Por Aline Ribeiro
- quarta-feira, 23 novembro 2005
Basta observar com certo cuidado as características de uma árvore
para conhecer um pouco da sua história. É isso mesmo. Por mais estranho
que possa parecer, as plantas têm uma espécie de arquivo pessoal.
Difícil de compreender?
O médico patologista Paulo Saldiva, mais
conhecido como professor Pepino entre seus colegas e alunos da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), explica. “Por meio do
tronco, é possível medir a poluição que a árvore recebeu ao longo dos
anos. Dá para saber se os resíduos são de carros, da indústria ou de
outras fontes de dispersão”, afirma. Durante um passeio pelo Parque
Ibirapuera no início deste mês, o professor ensinou à equipe de
reportagem do O Eco como identificar o grau de poluição ao redor, apenas observando a reação da vegetação.
Saldiva explica que não é um “abraçador de árvores”, mas que o
interesse por elas veio do seu trabalho com os efeitos da poluição sobre
a saúde dos seres humanos. Os estudos epidemiológicos, que usam
técnicas estatísticas para determinar causas da morte em grandes números
de pessoas, são bons para identificar os casos agudos, mas não os
crônicos.
Os troncos das árvores têm memória, e mostram esses efeitos. Além
disso, as doenças das árvores não são tão diferentes das nossas. Não é
tão fácil ver os nossos pulmões por dentro, mas ao examinar as folhas dá
para ter uma idéia do que está acontecendo. E sem os equipamentos caros
de medição que no Brasil só São Paulo tem.
Quanto mais próximas as árvores estão das vias de tráfego, mais fácil
é enxergar os efeitos da poluição sobre suas folhas e tronco. Durante a
“aula ao ar livre”, Saldiva tomou como exemplo uma Sibipiruna
localizada a cerca de 10 metros de uma avenida próxima ao Ibirapuera. A
parte da árvore que está voltada para o parque apresenta grande
quantidade de liquens, uma associação entre algas e fungos (foto acima).
Do outro lado da mesma planta, na área virada para a avenida, a
ausência desses seres vivos é nítida. “Os liquens só sobrevivem em
locais menos poluídos, porque são muito sensíveis. É como se eles se
escondessem”, diz o professor. Espécies como briófitas também preferem
lugares mais limpinhos para morar (foto abaixo).
Ao adentrar o parque, em local um pouco afastado da avenida, Saldiva
escolheu um pé de Hibisco para mais uma lição. “Goiabeiras e hibiscos
são mártires da ação oxidante”, brinca, ao contar que as duas espécies
são muito suscetíveis aos efeitos da poluição. O professor utilizou uma
folha da árvore para mostrar as conseqüências da exposição ao ozônio.
“Podemos estabelecer uma nota para cada folha, de acordo com suas
lesões. As descoloradas receberiam sete. As que apresentam necrose
(morte de parte das células) ganhariam oito. Se a folha estiver morta,
tem nota máxima”, classifica. A ocorrência de lesões foliares aumenta à
medida que se vai para o interior do Ibirapuera, onde a concentração de
ozônio é maior. Ao mesmo tempo, quanto mais longe das vias de tráfegos,
mais liquens são avistados nos troncos das árvores.
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E como saber se os prejuízos das folhas são mesmo causados pela
concentração de gases poluidores e não por pragas, por exemplo? Saldiva
tem a resposta na ponta da língua. “Pegue uma folha e a coloque contra a
luz, para observar melhor onde estão as lesões. Se estiverem entre um
canal vascular e outro, significa que foram provocadas pela poluição.
Caso fossem causados por bichos, os machucados estariam nos próprios
canais, que é onde eles se instalam para retirar alimentos”, explica.
Assim como os troncos, o arquivo da folha permite que se saiba por quais
elementos químicos esta vem sendo contaminada. “Apesar de ter memória
mais curta, dá para saber. É só levá-la para um laboratório, passar um
algodão em sua superfície e submeter o material à análise.”
Outros indícios
Assim como os troncos apresentam ou não liquens de acordo com o
posicionamento diante das vias de tráfego, a quantidade de folhas dos
galhos varia conforme o seu grau de exposição aos gases poluentes.
Quanto mais perto das avenidas, menos folhas os galhos terão. “Grandes
quantidades de poluição podem ocasionar até mesmo a morte das árvores”,
lamenta Saldiva. A direção dos ventos é outro fator determinante para a
disposição dos seres vivos na planta. “Onde o vento bate dificilmente
tem briófitas, liquens e grande quantidade de folhas”, afirma.
As soluções simples e eficazes que o professor Pepino encontrou para
medir os níveis de poluição do ar vêm sendo disseminadas em outras salas
de aula. Em Cubatão, estudantes da rede pública estão aprendendo a
técnica de biomonitoramento com a ajuda dos alunos de Saldiva. As idéias
também foram aproveitadas em Santo André e São José dos Campos, cujas
prefeituras instalaram floreiras em diversos pontos da cidade.
O professor lembra que o exercício de analisar a quantidade de
material particulado por meio das plantas pode ser feito em qualquer
grande centro. “Muitos acham que somente São Paulo tem altas taxas de
poluição. Isso não é verdade. Outras cidades possuem índices elevados,
mas não dispõem de aparelhos que quantifique isso. Quando não é possível
descobrir por meio de medidores especializados, a vegetação é um ótimo
instrumento”, ressalta. Ele lembra que algumas espécies, como eucaliptos
e palmeiras, não servem como base para a realização de pesquisas, pois
possuem cascas ácidas que impedem a sobrevivência dos liquens.
Os ensinamentos de Saldiva sobre como medir a poluição por meio da
natureza refletem apenas parte de sua personalidade. Apaixonado pelas
plantas e muito preocupado em preservar o meio ambiente, Pepino dá
exemplos não somente enquanto trabalha, mas durante atos triviais. Andar
de carro, por exemplo, só se houver muita necessidade. Sua bicicleta
Caloi vermelha é mais que suficiente para os quilômetros que percorre
diariamente entre sua casa, no bairro Itaim Bibi, até o trabalho, na
avenida Doutor Arnaldo. “Sempre carrego uma troca de roupas na mochila
para o caso de me molhar com a chuva.”
Especializado em Patologia, Saldiva pode ter herdado do pai pediatra a
vocação para a medicina. Entrou no curso com apenas 16 anos e teve seu
primeiro contato com a pesquisa sobre qualidade do ar nas aulas do
húngaro Gyorgy Miklos Bohm, há cerca de 30 anos. Depois disso, nunca
mais parou. Hoje luta para que São Paulo (cidade pela qual é apaixonado e
que, inclusive, deu origem a seu nome) seja um lugar melhor para se
viver. Se você quiser colaborar para isto, a dica está dada. É só olhar
para o lado e ver o que a vegetação está dizendo.