Hortas comunitárias resistem à urbanização na maior metrópole do Brasil
Em São Paulo, as iniciativas periféricas trazem novas perspectivas de vida aos agricultores urbanos, homens e mulheres que vivem em condições de vulnerabilidade social
Arte: Moisés Dorado/Jornal da USP
Do plantio ao prato, seja em um restaurante ou em qualquer residência na cidade de São Paulo, os legumes e as hortaliças passam por um longo caminho. São produzidos, em grande parte, em municípios próximos à capital, como Mogi das Cruzes, Santa Isabel e Suzano, na região leste, e Ibiúna, Itapetininga, Piedade do Sul e Sorocaba, na região oeste, formando o Cinturão Verde. Essa produção é encaminhada à Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), na Zona Oeste da cidade, que comercializa os alimentos junto a feirantes e comerciantes em geral. Nesse trajeto, os preços vão aumentando a cada etapa, ainda mais se existirem outros atravessadores e intermediários.
Além desta produção, há na capital paulista iniciativas de plantio de legumes e hortaliças nas chamadas “hortas comunitárias”. Nestes casos, o trajeto do plantio ao consumo é mais curto.
A USP vem atuando nesse caminho auxiliando estas iniciativas com pesquisas e estudos que permitem viabilizar novos empreendimentos ou incentivar os já existentes. Estes locais acabam se tornando campos férteis para a Universidade desenvolver estudos e experimentos em educação e segurança alimentar, cultivos de ervas medicinais e geração de conhecimento.
Estas “hortas comunitárias” vão surgindo cada vez mais nesta São Paulo que é a maior metrópole brasileira, com cerca de 12,3 milhões segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2021 – distribuídos numa área de 1.521 quilômetros quadrados (km²). Elas brotam em cantos cinzentos das regiões centrais da cidade ou em pedaços de chão esquecidos nas periferias.
Não se sabe ao certo quantas são, mas já passam de centenas, algumas com um caráter mais social de produzir alimentos saudáveis e gerar renda para quem há muito já foi esquecido pelo mercado de trabalho, ou como mote de sobrevivência contra desigualdades estruturais. E outras, instaladas em bairros de classe média, possuem um valor mais simbólico de resistência à frenética urbanização da cidade e mostram uma nova relação de consumo com o alimento.
De acordo com informações da Secretaria do Verde e Meio Ambiente, da Prefeitura de São Paulo, a plataforma Sampa+rural, que reúne iniciativas de agricultura, turismo e alimentação saudável, registra atualmente 103 hortas urbanas na capital paulista. No site da plataforma é possível visualizar a localização das hortas espalhadas pela cidade.
Na USP, grupo de cientistas centraliza estudos sobre agricultura urbana
Dentre as diversas iniciativas da USP junto a hortas urbanas e comunitárias pode-se destacar o Grupo de Estudos em Agricultura Urbana (GEAU) que, em 2016, foi integrado ao Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. Desde então, o grupo traz uma proposta de nuclear debates e estudos sobre a agricultura urbana (AU) e periurbana no município de São Paulo: possibilidades, conexões e contemporaneidade. A coordenadora do grupo é a professora Thais Mauad, pesquisadora do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FMUSP) da USP, especialista em saúde urbana e fundadora da horta comunitária da FMUSP.
Desde a sua criação, em 2014, o grupo mantém parcerias com instituições de ensino e pesquisa no Brasil e no exterior, além de congregar pesquisadores de várias unidades da USP – da Faculdade de Medicina, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, do Instituto de Energia e Ambiente e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental -, e também permaneceu ativo, inclusive, durante a pandemia. Um dos artigos mais recentes publicado pelo grupo, em março de 2021, na revista Sustainability, foi The Impact of COVID-19 on Urban Agriculture in São Paulo, Brazil.
O artigo, de autoria de pesquisadores brasileiros e da Université Paris-Saclay, Paris, França, mostrou como os agricultores foram afetados por interrupções na cadeia alimentar durante a pandemia de coronavírus. Os pesquisadores mostraram que 50% dos agricultores urbanos de São Paulo foram afetados pela pandemia, o que resultou em sensível queda nas vendas de seus produtos. Os mais prejudicados foram aqueles que dependiam de intermediários, e mesmo entre os que conseguiram se adaptar aos novos canais de venda, 22% afirmaram que ficou mais difícil obter insumos para a horta. “Houve queda significativa no valor de venda dos produtos e aumento no custo dos insumos entre abril e maio de 2020”, descreve o artigo.
Professora Thais Mauad, do Departamento de Patologia da FMUSP, é uma das fundadoras da “Horta da Faculdade de Medicina”. “O ambiente da horta nos faz pensar na origem do nosso alimento e sua importância para manter uma boa saúde”, diz – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Os pesquisadores observaram também que embora os agricultores não tivessem recebido apoio institucional do governo durante a pandemia e os trabalhos nas hortas tivessem diminuído bastante, nenhuma horta foi fechada permanentemente.
Por fim, com todas as dificuldades, os autores reconhecem o papel estratégico da agricultura local no alívio da insegurança alimentar em grandes cidades como São Paulo e defendem a necessidade da melhoria de políticas públicas para a área. “A AU auxilia na diminuição da dependência de produtos frescos transportados por longas distâncias, especialmente em bairros mais carentes, criando renda e empregos para as pessoas que precisam”, relata o estudo.
Os dados foram obtidos a partir da análise de duas pesquisas governamentais, com 2.100 agricultores do estado de São Paulo e 148 da cidade de São Paulo, além de duas pesquisas qualitativas feitas com voluntários de dez hortas comunitárias e sete agricultores urbanos.
Parceria estuda a produção urbana em São Paulo e Melbourne
Em uma das parcerias estabelecidas no exterior, pesquisadores do GEAU e da Universidade de Melbourne, Austrália, buscam compreender como se estabelecem os sistemas de produção urbana de alimentos nas duas metrópoles – São Paulo e Melbourne.
O projeto visa gerar conhecimento e aumentar a capacidade de resiliência dos sistemas de produção urbana de alimentos; entender e aumentar a governança de agricultura urbana nas duas cidades; aumentar a capacidade técnica para melhorar as práticas de irrigação; e melhorar a seleção de plantas comestíveis apropriadas para os dois ambientes.
O projeto também inclui a realização de seminários e visitas técnicas para trocar conhecimento em permacultura (ciência holística e de cunho socioambiental, que congrega o saber científico com o tradicional popular) e irrigação no contexto urbano, além da promoção de eventos com a participação de autoridades do governo local (SP), com o objetivo de ajudar no avanço de políticas públicas locais para a produção sustentável de comida nas cidades e técnicas de manejo de água em tempos de crise hídrica.
“A parceria com Melbourne rendeu dois artigos e um capítulo de livro, cujo tema foi a agricultura urbana em Melbourne e São Paulo, tendo como pano de fundo a questão da terra”, explica ao Jornal da USP a professora Thais. O GEAU também publicou o dossiê Agricultura urbana no município de São Paulo: considerações sobre produção e comercialização na Revista de número 101, do IEA, em abril de 2021; e contribuiu com um capítulo de e-book sobre a fome, que será lançado em breve pela USP.
Conheça mais sobre os integrantes do grupo GEAU:
Partindo para a prática
Não bastam artigos, estudos e projetos. Para além das pesquisas sobre o tema e dos saberes científicos que resultam em benefício dessa nova demanda social da cidade, a USP parte para projetos concretos como o da “Horta da Faculdade de Medicina”, plantada na laje de um dos edifícios da Faculdade de Medicina.
Horta da Faculdade de Medicina da USP. Cultivo feito na laje de um dos prédios da faculdade em bombonas de plástico e vasos de isopor. Professores, alunos, funcionários e voluntários da comunidade se revezam para cuidar da horta.
Crédito: Cecília Bastos/USP Imagens
Além dos benefícios proporcionados pelos alimentos produzidos e colhidos no local de forma orgânica, o espaço também serve de discussão para vários assuntos, como o das práticas integrativas junto à medicina tradicional. Thais Mauad, uma das fundadoras e coordenadora da horta, crê que é importante se pensar nos fatores que estão na gênese das doenças. “O ambiente da horta nos remete a origem do nosso alimento e sua importância para manter uma boa saúde”, diz
Na grade curricular da FMUSP existe a disciplina “Medicina Culinária”. De acordo com a docente, trata-se de uma disciplina optativa que já é ministrada há três anos. “Oferecemos uma vez por ano e, neste 2021, tivemos uma enorme procura, por mais de 100 alunos, e estamos ministrando na forma on-line para os campi de Ribeirão Preto e Bauru, além da capital”, conta. Na matéria, professores da FMUSP, profissionais e chefes gastronômicos ministram aulas e oficinas que abordam o impacto da alimentação na saúde dos pacientes.
Alguns dos alimentos produzidos na horta Faculdade de Medicina – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Thais fala dos variados cultivos que existem na horta. “Além das verduras e legumes mais conhecidos pela população, como alface, chuchu, cebolinha e couve, temos também as Pancs (plantas alimentícias não convencionais), que eram os alimentos consumidos por uma geração mais antiga – taioba, caruru, beldroega, ora-pro-nóbis, cambuquira, folha de batata-doce, etc. “Essas hortaliças são de fácil cultivo e cuidado, além de serem altamente nutritivas”, diz.
E para mostrar que essas plantas são saborosas, duas pesquisadoras da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP – Ana Maria Bertolini e Gabriela Rigote – organizaram um e-book com receitas utilizando as Pancs. Acesse o livro de receitas: https://www.fsp.usp.br/sustentarea/e-books/
Alguns dos alimentos produzidos na horta Faculdade de Medicina
Foto: Cecília Bastos/USP Imagens