[Esquerda.net] Não por mero acaso, o percurso histórico de agravamento das desigualdades produtivas e da fome, no século XX, é coincidente com o da história das principais multinacionais que ainda hoje atuam no mercado mundial. Artigo de Ricardo Vicente.
Atualmente os discursos políticos e técnicos dominantes
nas sociedades ocidentais condicionam brutalmente a opinião de qualquer
cidadão sobre o que é hoje a agricultura no mundo. Propagam-se as ideias
sobre os avanços tecnológicos da ciência e a sua facilidade de acesso: a
mecanização, a comunicação, os processos de automatização, as
ferramentas biotecnológicas, a obtenção de novas variedades, etc. A
sociedade absorve a ideia de que a população mundial é suportada por uma
espécie de agricultura industrializada. Esta ideia é falsa, mas é sobre
ela que se desenham e promovem políticas que são aplicadas local e
globalmente. A agricultura é muito diversa e bastante desigual. Esta
situação é fácil de constatar, não apenas comparando países
“desenvolvidos” com países pobres mas também dentro de cada país.
Pensar e desenhar políticas agrícolas significa intervir
sobre a vida de todos nós, mas em especial sobre a vida de uma grande
fatia da população mundial que depende diretamente da agricultura
enquanto atividade económica e de subsistência, cerca de 27% (FAO,
2010). Os dados da FAO relativos à população agrícola do ano 2010
mostram um globo onde a agricultura e a produção de alimentos andam a
velocidades muito diferentes: 49% da população africana; 56% da África
central; 39% da Ásia; 47% da Ásia do sul; 16% da América latina; 1,7% da
América do norte; 5,9% da Europa; 2% da Europa central; 4,4% em
Espanha; 10,3% em Portugal.
Segundo Mazoyer e Roudart (2001), 80% dos agricultores
em África e 40 a 60% na América Latina e Ásia apenas dispõem de
utensílios manuais e, entre estes, só 15 a 30% têm tração animal.
Referem os mesmos autores que a diferença de produtividade do trabalho
entre a agricultura manual menos produtiva do mundo e a agricultura
motorizada e mecanizada mais produtiva, no espaço de um século (o séc.
XX), passou de 1:10 para 1:500. No caso dos cereais, afirmam que um
trabalhador isolado, na melhor situação, consegue produzir 2.000
toneladas, enquanto que, na pior situação, uma família produz apenas 1
tonelada, no espaço de um ano. Estas duas realidades encontram-se hoje,
frequentemente, separadas não por um oceano mas por um muro ou vedação.
É sobre esta realidade desigual que se desenham acordos e
políticas internacionais que interferem diretamente nas atividades
agrícolas, mas é também neste quadro que atuam as diversas empresas
multinacionais produtoras e distribuidoras de fatores de produção. Não
por mero acaso, o percurso histórico de agravamento das desigualdades
produtivas e da fome, no século XX, é coincidente com o da história das
principais multinacionais que ainda hoje atuam no mercado mundial (ver
figuras 1, 2 e 3).
Foi no decorrer dos anos 60 e 70 que todo o processo se
acelerou, com o surgimento crescente de variedades híbridas, adubos e
pesticidas, possibilitando o melhoramento da relação
semente-fertilizante e consequentemente o grande aumento das produções.
Este processo ficou historicamente conhecido por revolução verde. Nos
países e regiões mais pobres, onde eram maiores os riscos de fome
consequentes do aumento da população e da fraca capacidade produtiva dos
sistemas agrários, as consequências foram desastrosas. A maioria dos
novos saberes e tecnologias não chegaram aos agricultores locais e as
poucas que chegaram retiraram-lhes a autonomia, criando dependências
entre agricultores e empresas fornecedoras de fatores. Na história
destas empresas abundam as situações fraudulentas que provocaram a
destruição de recursos endógenos e criaram dependências dos seus
negócios. Surgiram diferenciais de produtividade brutais com a entrada
em funcionamento de unidades produtivas modernas, os preços dos
alimentos caíram, muitos agricultores abandonaram a atividade,
destruíram-se redes de distribuição locais e surgiram novas dependências
alimentares que espalharam a fome e o desespero. Iniciou-se uma mudança
de paradigma, passou a haver produção de alimentos suficiente para
alimentar a população mas a fome agravou-se devido à impossibilidade de
acesso aos alimentos.
Todas as atuais principais empresas de produção e
distribuição de sementes, adubos e pesticidas têm um histórico de
atividade que iniciou antes ou durante a revolução verde e quase todas
já tiveram reestruturações decorrentes da fusão com outras empresas. Há
quase um século que atuam numa área de atividade onde o negócio é
garantido e ainda não parou de crescer (ver Fig. 4 e 5). Se analisarmos
as suas histórias, facilmente constatamos que os seus negócios cresceram
sem regras nem princípios, ao lado dos interesses financeiros e
políticos das maiores potencias mundiais.
Alguns factos históricos sobre as principais empresas multinacionais que operam no mercado se sementes, pesticidas e adubos:
Monsanto:
Surge em 1901 com a produção de sacarina. Produz vários
equipamentos para a 2ª guerra mundial; em 1945 entra no negócio dos
pesticidas; em 1960 é uma das principais produtoras de agente laranja,
herbicida com efeito desfolhante aplicado na guerra do Vietname e que
provocou sequelas brutais nos soldados e na população local; em 1964
lança o primeiro herbicida seletivo pré-emergência para a cultura do
milho.
Syngenta:
Surge apenas em 1999, mas resultou de uma fusão
empresarial onde se destacava a Geigy, que se fundou em 1935 e produzia
inseticidas; em 1974 entrou no negócio das sementes.
Bayer:
Surge em 1863 como produtora de corantes e mais tarde
dedica-se à indústria farmacêutica. Prestou serviços à Alemanha de
produção de equipamentos necessários às duas guerras mundiais; Em 1956,
Fritz ter Meer, depois de sete anos de prisão consequentes de
colaboração em ensaios em seres humanos e tráfego de escravos
provenientes de um campo de concentração em Aushwitz, foi nomeado
presidente do conselho de supervisão da Bayer.
DuPont:
Iniciou em 1802 com a produção de pólvora; Produziu
equipamentos para as duas guerras mundiais; Em 1943 participa no
Manhattan Project e no desenvolvimento de uma bomba nuclear; Entre 1997 e
1999 comprou absorveu a empresa Pioneer, uma das maiores empresas que
atuava no mercado mundial de sementes (desde 1926), altura em que lançou
o primeiro milho híbrido comercializado. Em 1960 lança o inseticida
Lanate.
Limagrain:
Surge em 1942 com a produção e venda de sementes.
BASF:
Fundada em 1865 iniciou atividade com a produção de
corantes. Em 1913 sintetizaram amónio pela primeira vez. Produziram
diversos equipamentos para as duas guerras mundiais. Em 1949 lançam um
novo negócio com o herbicida U46.
DOW:
Foi criada em 1897 com um negócio de venda de
descolorantes e sais. Forneceu materiais diversos para as duas guerras
mundiais; nas primeiras duas décadas do século XX assumiu-se como um dos
maiores produtores de pesticidas; entre 1951 e 1975 desenvolveu armas
nucleares; entre 1965 e 1969 forneceu napalm e agente laranja para a
guerra do Vietname.
Potash Corp
O histórico da empresa remonta a 1975, quando o Governo
de Saskatchewan, Canadá, decidiu nacionalizar e agrupar o negócio de um
conjunto de empresas estratégicas que operavam pelo menos desde 1950 na
extração e venda de potássio e derivados. Em 1989 o grupo foi
privatizado.
Mosaic Company
Foi lançada em 2004, nos Estados Unidos, e resultou da
fusão de duas empresas, a Cargill e a IMC-Global que tinha histórico de
atividade desde 1909.
Yara
Fundada em 1905, 10 anos depois, durante a primeira
guerra mundial, fornecia nitratos de cálcio e de amónio à Alemanha e aos
Aliados.
OCP Group
Formado em 1920, em Marrocos, na extração e comercialização de fósforo e derivados.
Fig. 1 – Mercado de Sementes
Top 10 – 2007
|
Vendas de sementes
(milhões $)
|
% mercado global de sementes
|
Monsanto (US)
|
4.964
|
23%
|
DuPont (US)
|
3.300
|
15%
|
Syngenta (Switzerland)
|
2.018
|
9%
|
Groupe Limagrain (France)
|
1.226
|
6%
|
Land O’ Lakes (US)
|
917
|
4%
|
KWS AG (Germany)
|
702
|
3%
|
Bayer Crop Science (Germany)
|
524
|
2%
|
Sakata (Japan)
|
396
|
<2 p="">
2>
|
DLF-Trifolium (Denmark)
|
391
|
<2 p="">
2>
|
Takii (Japan)
|
347
|
<2 p="">
2>
|
Top 10 Total
|
14.785
|
67%
|
Fonte: ETC Group
Fig. 2 – Mercado de Pesticidas
Top 10 – 2008
|
Vendas de sementes
(milhões $)
|
% mercado global de sementes
|
Bayer (Germany)
|
7.458
|
19%
|
Syngenta (Switzerland)
|
7.285
|
19%
|
BASF (Germany)
|
4.297
|
11%
|
Dow AgroSciences (USA)
|
3,779
|
10%
|
Monsanto (USA)
|
3,599
|
9%
|
DuPont (USA)
|
2,369
|
6%
|
Makhteshim Agan (Israel)
|
1,895
|
5%
|
Nufarm (Australia)
|
1,470
|
4%
|
Sumitomo Chemical (Japan)
|
1,209
|
3%
|
Arysta Lifescience (Japan)
|
1,035
|
3%
|
Top 10 Total
|
34.396
|
89%
|
Fonte: Agrow World Crop Protection News, August 2008
Fig. 3 – Mercado de adubos
Fig. 4 – Consumo mundial de azoto, fósforo e água
Fig. 5 – Consumo mundial de pesticidas e volume de negócio
* Ricardo Vicente é Engenheiro Agrónomo.
Artigo originalmente publicado pelo Esquerda.net e reproduzido pelo EcoDebate, 31/03/2014
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