- Escrito por Guilherme F. W. Radomsky, Michele L. Lima Ávila e Daniela Lesina Soares
Estamos vivendo um momento crucial para o rumo da
produção e consumo de alimentos. Em que pese o processo que torna
paulatinamente qualquer coisa em mercadoria (a natureza, a água, as
ideias), este mesmo movimento abre espaços para a valorização, via
mercados, de características distintivas dos alimentos: a originalidade,
o cuidado, o sabor, os traços culturais, a tradição e a relação com a
sustentabilidade ambiental.
Estudos recentes têm demonstrado duas versões sobre o fenômeno do
consumo nas sociedades contemporâneas e que são possivelmente
complementares. Alguns sustentam que consumo é o ápice da ação alienada,
espaço da realização individual e egocêntrica de um “cidadão” que age
para obter prazeres ditos consumistas. Outros, com interpretações mais
otimistas, apontam que é possível ver transformações relevantes para as
quais grupos coletivos conseguem ter sucesso ao “pressionar” produtores a
modificarem processos de produção e criar demandas por atributos
considerados valiosos, especialmente quando se trata de alimentos:
qualidade, pureza, sabor, originalidade (Portilho, Castaneda, 2012).
Embora se reconheça que este ainda é um consumidor escasso ou
minoritário, conforme mostra Guivant (2003), atualmente seu potencial
político não pode ser menosprezado.
Quais aspectos estão em questão para estes consumidores ativos e
engajados e qual a importância de seus argumentos para modificações das
práticas produtivas? Um dos fenômenos de destaque quando se observam
mudanças nos padrões de consumo diz respeito aos alimentos ecológicos.
Portanto, o que dizem consumidores de alimentos ecológicos sobre o que
desejam e que características aparecem como essenciais para eles?
As informações sobre preferências e gostos de consumidores que
analisamos a seguir são oriundas de uma pesquisa de caráter
antropológico realizada por um dos autores entre 2008 e 2009 no
município de Chapecó, estado de Santa Catarina (Radomsky, 2010). Na
época, como estratégia metodológica, optou-se por acompanhar a
construção de uma organização de consumidores de alimentos ecológicos da
região cujo objetivo era tornar a oferta de produtos mais ampla no meio
urbano e simultaneamente criar mercados para agricultores familiares
locais.
O grupo organizou-se em torno de professores e alunos (e seus amigos)
de uma universidade comunitária de Chapecó e possuía um núcleo
expressivamente engajado que contava com cerca de doze pessoas. Embora
pequeno em número, a mobilização era intensa: eram conhecidos dos
agricultores e mediadores de sindicatos rurais, cooperativas e da
Prefeitura e conseguiram organizar diversos eventos de compras coletivas
de alimentos exclusivamente ecológicos, que chegaram a contar com mais
de quarenta pedidos.
Percebe-se que um dos argumentos mais fortes de mobilização das
práticas de consumo está na qualidade. Porém, não se trata de uma
característica isolada como se para o grupo bastasse uma qualidade sem
atributos e que não espelhasse elementos da sociedade em que vivemos.
Como gostam os antropólogos, valorizaremos as falas das pessoas
participantes do grupo, que na época nos brindaram com frases
admiráveis.
Um dos “riscos” das compras coletivas – sempre debatidas no coletivo –
residia na perda da qualidade dos alimentos que ficassem armazenados
durante muito tempo. Isto equivaleria a comprar em supermercados e um
dos participantes esclareceu para os demais participantes: “é preciso
distinguir mercadorias de alimentos; alimento é uma coisa, outra coisa é
sucata alimentar. Mercadoria é feita pra durar na prateleira
do supermercado. [...] Até as crianças sabem o que é bom e o que é ruim
nos produtos”. Observamos que, mesmo sem verbalizar desse modo, alimento
é entendido como dádiva. Em sua percepção, mercadoria é
necessariamente ruim, sucata, pois é produção em massa apenas para que
possa permanecer com bom aspecto nas prateleiras de supermercados. O
aspecto físico do produto-alimento conta menos que sua essência
intrínseca. Com alguma ironia, a “sucata alimentar” parece ser uma
imagem do mundo em que vivemos em que ela se tornou comum e com objetivo
mais eminente de durar na prateleira do que de ser um bem saboroso e
fonte de energia.
Em outro momento, a mesma pessoa procurou mostrar como comida não
pode ser pensada sem que os atributos culturais estejam igualmente
implicados. Diz ele: “temos que resgatar aquele saber, aquele
conhecimento desinteressado.
Antes o agricultor fazia o vinho para tomar e se ele fosse te vender
ele ia na pipa pegar. O salame a gente quer agora, mas tem que preparar e
avisar o agricultor”, sublinhando que os produtos demandados pelos
consumidores são resultado de um processo de cultivo, criação e trabalho
da família. Segue dizendo que “não é qualquer salame. Daí ele [o
agricultor] tem que criar o porco, alimentar
sem milho híbrido,
fazer o salame com a tripa do porco invertida, queremos aquele salame
que ficou famoso. Depois o agricultor tem que deixar o produto na fumaça
para as moscas não colocarem ovos. E o controle da qualidade? É no
cheiro”, gesticulando com os dedos próximos ao nariz enquanto falava, “é
assim que eu compro salame”, concluiu.
Este conjunto de características dos alimentos e também dos
agricultores que os produzem fornece um sentimento de autenticidade e
pureza para o consumidor (o estudo de Pratt, 2007, é exemplar neste
sentido). O que aparece na fala é exatamente o que algumas pesquisas
mostram sobre a importância da biodiversidade agrícola e dos
conhecimentos tradicionais para a produção de alimentos, nos quais a
interpelação se direciona para o agricultor trabalhar a favor de uma
espécie vegetal (no caso, milho) de variedade local e valorizar o
conhecimento que utiliza os sentidos, vale-se dos objetos antigos e dos
processos característicos da agricultura camponesa (aproveitando as
matérias primas desenvolvidas na propriedade rural). O pertencimento,
que nos impele a refletir sobre seu caráter cultural, adquire o caráter
relacional, tal como argumentam Heley e Jones (2012), pois é aquele saber que não aparece em outro contexto e tem na experiência sua autenticidade.
Na reunião seguinte, ainda durante nossa pesquisa, ocorre uma
instigante conversa sobre os valores. “É, hoje até o paladar foi
monetarizado...” fala livremente um dos membros do grupo. “Se tudo está
monetarizado”, responde um deles, “temos que usar o dinheiro para
valorizar e fortalecer a agroecologia. Temos que ter produtos com
valores agregados (salames, queijos, vinhos) para que os de menor preço
venham junto [nas compras coletivas, para tornar mais atraente para o
agricultor]...”. O primeiro voltou a comentar algo, mas desviando um
pouco do assunto, embora sem discordar. E segue o segundo corrigindo sua
própria frase, falando ainda do dinheiro e sua relação com a
agricultura ecológica: “Valor agregado não, preço agregado, pois são os valores morais que vêm agregados”.
Estamos vivendo um momento crucial para o rumo da produção e consumo
de alimentos. Em que pese o processo que torna paulatinamente qualquer
coisa em mercadoria (a natureza, a água, as ideias), este mesmo
movimento abre espaços para a valorização, via mercados, de
características distintivas dos alimentos: a originalidade, o cuidado, o
sabor, os traços culturais, a tradição e a relação com a
sustentabilidade ambiental.
Este tipo de consumidor, como antes dissemos, é ainda pouco comum,
mas tem tido importante papel na politização das atividades econômicas
(DuPuis e Goodman, 2005). Percebe-se a crítica à economia capitalista
que, de certa forma, sugere um tipo expansivo de aquisição de
mercadorias ao tentar suprir o mercado por meio da produção em massa.
Com isto, testemunhamos a extração e o uso de recursos naturais sem o
cuidado de recomposição e que tem como um dos efeitos a poluição do
solo, do ar e dos cursos d’água.
O consumo de alimentos ecológicos se insere em uma distinta lógica de
valores em que se destaca a importância do modo como foi produzido,
levando em consideração uma maior harmonia com o ambiente e amparado no
contexto sociocultural.
Um aspecto essencial das práticas de consumo de alimentos ecológicos
por meio de grupos organizados é que o fenômeno faz necessária a
reconstituição das relações de proximidade entre agricultores e
consumidores, ensejando formas distintas da percepção sobre alimentos,
cooperação e mercados.
Assim, o consumo de produtos agroecológicos, mesmo que ainda de
maneira tímida, vem se colocando para o debate atual sobre alimentação e
cultura como questionador das práticas habituais de consumo. Diferente
do produto massificado vislumbrado como mera mercadoria, quando os
consumidores ecológicos se relacionam com o alimento de maneira mais
próxima (e até emotiva) desempenham papel crucial para subverter as tão
desgastadas relações econômicas impessoais em nossas sociedades.
Referências
DUPUIS, E. M.; GOODMAN, D. Should we go ‘‘home’’ to eat? toward a reflexive politics of localism. Journal of Rural Studies, v. 21, n. 3, p. 359–371, 2005.
GUIVANT, J. Os supermercados na oferta de alimentos orgânicos: apelando ao estilo de vida ego-trip. Ambiente e Sociedade, v. 6, n. 2, p. 63-81, 2003.
HELEY, J.; JONES, L. Relational rurals: some thoughts on relating things and theory in rural studies. Journal of Rural Studies, v. 28, p. 208-217, 2012.
PORTILHO, F.; CASTANEDA, M. Certificação e confiança face-a-face em feiras de produtos orgânicos. Revista de Economia Agrícola, v. 58, p. 11-21, 2012.
PRATT, J. Food values: the local and the authentic. Critique of Anthropology, v. 27, n. 3, p. 285-300, 2007.
* Guilherme F. W. Radomsky é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Michele L. Lima Ávila é acadêmica do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Bolsista PIBIC/CNPq, Daniela Lesina Soares é acadêmica do Curso de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.