terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Em defesa do aguapé

Purificando a água, o aguapé contribui para a sua reoxigenação. Ele faz gratuitamente este trabalho. É apenas lógico que alguns o considerem subversivo.

 
Dupla surpresa me causou a leitura de um artigo de jornal, assinado por um professor de botânica. Surpresa agradável pela coragem que o professor demonstra ao denunciar a tecnobur(r)ocracia que é a desgraça deste sofrido País, desagradável na demonstração de pensamento reducionista. Não esperava uma afirmação tão ecologicamente absurda como esta: "o aguapé causa total desequilíbrio ecológico onde quer que apareça".


Já estou vendo os tecnocratas em campanha de erradiacação do aguapé, aplicando herbicidas, provavelmente 2,4-D, nos corpos d'água. Aliás, pelas informações que tenho, isto já foi várias vezes feito em represas de São Paulo. Sei dos desastres ecológicos causados pelo combate ao aguapé no Sudão. Os resultados são os piores possíveis. O aguapé morto acaba indo ao fundo. Ali agrava os problemas da poluição. Sua decomposição consome ainda mais oxigênio do que já é consumido pela carga poluente. Longe de constituir desequilíbrio ecológico, a proliferação violenta do aguapé em água poluída tende, justamente, a eliminar a causa do desequilíbrio. Purificando a água, ele contribui para a sua reoxigenação.

 
As altas cargas orgânicas provenientes dos esgotos domésticos aumentam o que os sanitaristas chamam DBO, ou seja, a demanda biológica de oxigênio. Trata-se do consumo de oxigênio requerido pelas bactérias que fazem a decomposição da matéria orgânica. Um DBO elevado acaba matando todos os organismos que precisam de oxigênio, desde o protozoário até o peixe. No estágio final de uma elevada poluição orgânica sobram apenas bactérias anaeróbias, bactérias que vivem em condições de ausência de oxigênio. Estas bactérias produzem substâncias tóxicas e gases mal-cheirosos.




Nos estágios secundários das estações de tratamento de esgotos, quando concebidas em esquema tecnocrático, o efluente costuma ser violentamente agitado, ou se faz injeção de ar para que surja o "lodo ativado" que está constituído de bactérias aeróbias, bactérias que só proliferam na presença de oxigênio, de algas e de protozoários. Estas instalações são extremamente caras e as potentes máquinas de agitação ou injeção de ar têm enorme consumo de energia. Ora, o aguapé faz gratuitamente este trabalho. É apenas lógico que alguns o considerem subversivo, assim como para outros são subversivas as bactérias que, num solo vivo, fixam gratuitamente o nitrogênio no ar. A tecnocracia prefere fixar este nitrogênio com imensos gastos de energia, em suas gigantescas usinas de síntese do amoníaco, para vendê-lo a preço de ouro ao agricultor, em vez de ensinar-lhe como manejar ecologicamente o solo e fazer as bactérias trabalharem para ele.


 


Voltando ao aguapé, ele propicia em suas raízes a proliferação de toda uma comunidade viva, constituída de bactérias aeróbias, algas, protozoários ou pequenos crustáceos e larvas de insetos ou moluscos, que fazem trabalho equivalente ao do lodo ativado das estações secundárias convencionais. Ele vai além, ele faz também o serviço das estações terciárias que, em geral, não são implantadas devido a seu alto custo. Além de absorver diretamente parte da matéria orgânica solúvel, o aguapé absorve os sais minerais resultantes da decomposição da matéria orgânica pela microvida que ele abriga.




Aqueles que consideram o aguapé como uma praga queixam-se de sua rápida proliferação. Mal sabem eles que em águas puras ele não tem vez, não consegue crescer, fica parado. Nos rios de águas claras e nos rios de águas negras do Amazonas o aguapé não prolifera como o faz nos rios da Flórida, Mississipi, Louisiana ou em nossos rios poluídos. No Amazonas ele só cresce com força nos rios barrentos, como o Solimões. Conheço banhados bem equilibrados onde ele mal sobrevive; noutros, bem poluídos, ele cobre tudo. Em minhas lagoas de purificação de esgotos, no verão, ele consegue crescer até oito por cento ao dia. Não há planta mais eficiente que o aguapé em aproveitamento de energia solar e nutrientes. Mas é nisso que está sua grande utilidade. Sua taxa de crescimento é indicação biológica do grau de poluição. Ele é um termômetro de poluição, ao mesmo tempo em que constitui magnífico instrumento para purificação de águas.



Se a proliferação do aguapé constitui problema, a solução não está na simples eliminação ou não introdução, está no manejo.



Pessoalmente, há mais de dez anos venho trabalhando com plantas aquáticas. O aguapé comum, a Eichhornia crassipes, é apenas uma entre dúzias de plantas extremamente interessantes. Aqui no Sul, em nosso clima subtropical, a Eichhornia não cresce no inverno, quando as temperaturas baixam de 20 graus. Para trabalho intensivo em lagoa de purificação pode-se usar outras espécies, nativas da região, como algumas Heterântheras, Hidrocótiles ou Enhydras, ou mesmo Pistias e Salvínias. Para efeitos especiais, pode-se introduzir plantas menores, como Lemnas, Spirodela e mesmo Wolffias. Estas últimas são indicadores biológicos mais precisos que a Eichhornia. A presença ou ausência destas plantas aquáticas minúsculas em certas partes das lagoas me dizem mais sobre a qualidade da água do que muita análise. Os melhores resultados se obtém com consorciações, não com monoculturas de plantas aquáticas.



Por isso, onde posso, trabalho com banhados naturais. Em Pelotas, numa fábrica de óleo de soja, há quatro anos funciona um esquema de purificação do efluente em um pequeno banhado natural. Havia e continua havendo mais de 50 espécies de plantas aquáticas. Pouco a pouco, a comunidade vai se estratificando dentro do lago, ficando cada espécie naquela parte do lago em que a qualidade da água mais corresponde às suas exigências. O aspecto mais gratificante neste tipo de trabalho é ver como aumenta a fauna aquática: sapos, rãs, pererecas, cobras, peixes, aves e mamíferos. Iniciamos outro esquema, também em Pelotas, há pouco tempo: desta vez, trata-se de purificar os efluentes cloacais de todo um bairro, ainda em banhado natural.



É claro que uma purificação eficiente só se consegue em lagoas ou banhados bem dimensionados e manejados. Mas isso não quer dizer que seja desprezível o efeito benéfico do aguapé que prolifera livremente em rios e lagos poluídos. Também nesses casos o aguapé pode ser manejado para não chegar a ser "praga". O excesso deve ser colhido sistematicamente, para manter constante a área coberta. Também se pode mantê-lo afastado de pontos sensíveis, como turbinas, bastando fazer barreiras flutuantes. Nunca se deve deixar que prolifere a ponto de cobrir completamente um corpo d'água. Quando ele se aperta demais, parte da massa vegetal afunda e temos o efeito que mencionamos anteriormente.



E o que fazer com a biomassa colhida?



Num país com tantos solos exaurido, desestruturados, sem vida, sem húmus, erodidos, nada melhor do que este tipo de biomassa. Só a falta de imaginação limita seu uso.



O aguapé pode ser aplicado, simplesmente, como cobertura orgânica morta (mulching), em pomares, vinhedos, hortas, jardins e praças. Aliás, em São Paulo, por que não usar o "desfrute" do aguapé da Billings para recultivar algumas das grandes e feias chagas de terraplenagem especialmente ao longo das estradas, ou nos terrenos dos BNHs que hoje, não sei por qual perversão mental de seus planejadores e arquitetos, só se levantam depois que maquinária pesada tiver transformado a terra em paisagem lunar.



A biomassa colhida permite também fazer um excelente composto, um dos melhores. O material se decompõe rapidamente, devido a seu alto conteúdo de água, e forma medas bem arejadas, que não precisam ser revolvidas até amadurecerem, O composto resultante é rico também em macro e micronutrientes.


Em floricultura descobri que aguapé seco e compactado, especialmente quando se trata das variedades gigantes da Salvínia, é excelente substrato para orquídeas. Muito melhor que o xaxim - e o crime que hoje se comete com o xaxim é gritante.

Mas muitas das espécies aquáticas, entre elas a Eichhornia, a Heteranthera, a Enhydra, são boa forragem. O caboclo na Amazônia, que vive em casas flutuantes nas margens dos rios, costuma colher Eichornia para seus porcos. Muares também aceitam muito bem esta planta. A vaca gosta muito da Enhydra, mas só aceita a Eichhornia se for seca, picada e introduzida na ração. Mas o búfalo gosta do aguapé. O porco também gosta da Heteranthera.



Na China faz-se um bom papel de Eichhornia. Sua celulose está livre de lignina. Uma fábrica de celulose de aguapé não teria o problema da poluição com a lixívia negra. Ao separar a celulose, sobra proteína, mais de 20% da massa seca. As fábricas de celulose deveriam investigar esta planta. Enquanto que numa monocultura de eucalipto, em condições propícias, a produção de biomassa dificilmente alcança 30 toneladas / hectare/ ano, a Eichhornia, em clima tropical e em água bem poluída, pode facilmente produzir entre 150 a 300 to/ha/ano, em base de matéria seca, com mais uma vantagem: a primeira colheira no eucalipto se faz aos sete ou oito anos, na Eichhornia podemos começar a colher em dois ou três meses. A celulose seria subproduto da purificação de águas cloacais ou efluentes industriais, como os de laticínios, frigoríficos e alguns outros. Esta purificação por si só já justifica o custo das lagoas.



Há os que propõem utilizar o aguapé para retirar metais pesados de águas poluídas. De fato, o aguapé pode retirar metais da água. Mas este é outro enfoque reducionista, é varrer lixo para baixo do tapete. Os metais devem ser retidos na fonte, na própria fábrica. No caso do cromo, em curtumes, por exemplo, a reciclagem na fonte significa renda adicional. A instalação se paga em poucos meses. Se usarmos o aguapé para captar metais pesados, o que fazer com a biomassa colhida? Ela estará contaminada. Teremos de levá-la para um aterro "sanitário". Que absurdo!



Quem sabe, a atual crise nos faça repensar muita coisa. Por que não trabalhar com a Natureza, em vez de combatê-la sempre? Quanto emprego estaríamos criando. Quanto jovem biólogo, agrônomo, engenheiro, químico, teria trabalho fascinante pela frente. Que pena que estejamos fechando horizontes, quando o que precisamos é abri-los.

José Lutzenberger
Ecologia - Do Jardim ao Poder. L&PM Editores Ltda. Porto Alegre 1985
Texto recopiado em 1998 por Carla, secretária de Claudia Steiner (Fundação Gaia de Manaus)

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