Os trabalhos abrangem diversas linhas, como produção e propagação de mudas, biologia molecular e propriedades medicinais
Você se lembra da última vez em que comeu um butiá? E pitangas ou jabuticabas? Conhece o araçá, a feijoa e a grumixama? Para alguns, os nomes dessas frutas talvez remetam a sensações de nostalgia e a lembranças da infância. Para outros, especialmente aos que vivem em áreas urbanas, podem despertar certo estranhamento, sendo associados a alimentos exóticos ou até desconhecidos, afinal, não encontrados facilmente no mercado. Entretanto, todas essas frutas são nativas do Rio Grande do Sul e possuem grande valor nutricional e aptidões comerciais, ecológicas e ornamentais.
Estudar o potencial, as características e a variedade de plantas frutíferas nativas do estado é o objetivo de grupos que envolvem mais de cem pessoas, entre professores, pesquisadores e estudantes da Faculdade de Agronomia da UFRGS, da Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro), da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, da Universidade de Passo Fundo e da Faculdade de Agronomia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). As pesquisas, iniciadas em 2000, abrangem desde a etapa de sair em busca de plantas nativas pelo estado até a pós-colheita, incluindo estudos relacionados à produção e à propagação de mudas, à biologia molecular, ao estudo de propriedades medicinais, aos usos ornamentais e à recomposição de áreas.
A ideia é contribuir para o conhecimento dessas espécies em relação à sua distribuição geográfica, aos modos de reprodução, à estrutura genética e à definição de parâmetros para a conservação, além de colaborar para o desenvolvimento econômico e social dos produtores rurais e das comunidades tradicionais e para a recuperação de áreas degradadas. Os trabalhos foram reconhecidos no prêmio O Futuro da Terra 2016, concedido pelo Jornal do Comércio em parceria com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs), na categoria Inovação, Tecnologia Rural e Empreendedorismo.
Segundo o coordenador do projeto e professor da Faculdade de Agronomia da UFRGS Paulo Vitor Dutra de Souza, até poucos anos atrás, não se dava valor ao que é nativo. Desde que os primeiros colonizadores chegaram à América, a evolução da agricultura tem sido marcada pela introdução de espécies exóticas e desprezo pelas autóctones, que por muito tempo foram a base da subsistência dos povos que aqui habitavam. Os países tropicais e subtropicais detêm a maior diversidade de espécies vegetais vasculares, mas o número de frutíferas proporcionalmente utilizadas é ínfimo.
Esse panorama, segundo o professor, somente começou a mudar há cerca de duas décadas. Ele comenta que, mesmo na área acadêmica, o estudo de nativas era desvalorizado. “Encaminhávamos projetos e só ganhávamos recursos quando eram para as exóticas, como citricultura e viticultura. ‘Ah, porque não tem importância econômica’, alegavam. O que importava era o que estava implantado já.”
Paulo atenta, entretanto, que essa não era apenas uma questão brasileira, mas uma tendência mundial. O professor conta, como exemplo, a história de um viveirista que visitou a Austrália há cerca de 20 anos. “Aqui, na época, não se dava valor ao nosso Jerivá, só se plantava a palmeira real, nativa da Austrália. E, na Austrália, por outro lado, ele viu que a planta mais cultivada era o nosso Jerivá; eles não tinham palmeira real. O mundo não dava valor ao nativo, mas agora está mudando. E o Brasil tem dado valor ao que é nosso.”
De alguns anos para cá, os condomínios passaram a incentivar o plantio, com arquitetos e paisagistas investindo em butiazeiros, pitangueiras, jabuticabeiras, entre outras plantas voltadas à ornamentação. As nativas também vêm sendo usadas como fonte de alimentação para as aves e no paisagismo urbano. “Só que aí nos demos conta de que não conhecemos o nativo”, comenta Paulo.
O trabalho é dividido em diversas linhas de pesquisa. A parte de prospecção é a que sai em busca de plantas nativas pelo estado. A maioria é encontrada a partir da indicação de conhecidos ou de produtores, e todas são georreferenciadas. “Às vezes até os alunos comentam ‘ah, eu tenho uma planta, uma pitangueira, em casa, que é diferente e tem uma fruta grande, uma fruta mais colorida’. Então a gente vai lá e investiga essa planta. É aí que começa nosso trabalho”, conta o pesquisador.
Propagação por clones
A linha coordenada por Paulo é a de propagação de mudas por meio de clones – a chamada propagação vegetativa ou por estaquia, em que se coleta um ramo e o enraíza, de modo que a nova planta seja idêntica à planta-mãe. A maior parte dos viveiristas produz as mudas de sementes, e isso provoca uma diversidade nem sempre desejada. A comercialização das frutas, por exemplo, exige certa padronização e alto grau de previsibilidade. “Se um produtor quiser montar um pomar pra vender frutas para o mercado, tem que ter uma fruta que amadureça num determinado momento, que seja grande, bonita… Porque o mercado, lamentavelmente, não gosta do que é feio; se compra com os olhos”, comenta.
A técnica também pode ser utilizada para a reprodução de plantas de menor porte, como bonsais, que podem ser colocadas dentro de casa ou na sacada de apartamentos, por exemplo. “Só que isso tudo tem que ser por clone, porque, por semente, vou ter planta pequena, planta grande, planta de tudo que é tipo. Então a clonagem é justamente para a gente poder selecionar matrizes com finalidades diferentes”, explica.
O professor conta que os métodos utilizados são uma adaptação de uma tecnologia já utilizada pelos produtores de eucalipto, que possuem os chamados minijardins clonais. “A gente mantém uma plantinha dentro do vaso, pequenininha, e toda vez que ela vai brotando a gente corta as estaquinhas e enraíza, e consegue, dessa planta pequenininha, fazer 20, 30 estaquinhas por planta por mês. É uma forma comercial e tranquila de produzir esses clones”, comenta. No início, para que a estaquinha enraíze, é necessário irrigar a planta a cada dois minutos, mantendo em 90% o índice de umidade relativa do ar, para que não desidrate. Em cerca de quatro meses, entretanto, as plantinhas já estão carregadas de frutas.
Em alguns casos, a multiplicação também é feita a partir de enxertia, técnica em que são juntadas partes diferentes de duas plantas – a raiz de uma com o topo da outra. O processo pode ser utilizado tanto para agilizar o desenvolvimento quanto para combinar características desejáveis de duas plantas diferentes.
“Isso tudo a gente está testando para saber se enraíza, se não enraíza, se vinga, se não vinga”, explica Paulo. Posteriormente, as plantas são levadas para a Estação Experimental Agronômica, onde são avaliadas ao longo dos anos.
Propriedades medicinais
As propriedades medicinais e nutracêuticas das frutíferas nativas também são objetos de estudos. Em um trabalho, por exemplo, os pesquisadores analisam a quantidade de vitamina C presente nas frutas. O professor comenta que as mirtáceas, família de plantas como a pitangueira, a goiabeira, o araçazeiro e a jabuticabeira, por exemplo, têm bastante vitamina C, “e a gente, em um pomar nativo de guabiju, viu que têm plantas que produzem o dobro de vitamina C no fruto do que outra que está ao lado dela”. A ideia, conta, é selecionar e multiplicar essas plantas que produzem mais vitaminas.
Os estudos também indicam que muitas dessas frutas podem ajudar a combater radicais livres e que os extratos dos óleos de frutos das mirtáceas são capazes, até mesmo, de combater salmonela.
Outros potenciais econômicos
Uma alternativa de aproveitamento econômico das frutíferas nativas ainda relativamente pouco explorada, especialmente na região metropolitana, é o turismo rural. Uma ideia, por exemplo, seria a implantação de sistemas do tipo “colha e pague”, em que os consumidores visitariam os pomares, colheriam as frutas e, ao final, pagariam pelo que colheram, a exemplo do que é feito em propriedades da serra gaúcha, na área da viticultura, e em São Joaquim (SC), em plantações de maçã. Paulo conta que, além de permitir que as pessoas conheçam as plantas nativas do estado, “é uma sacada; não se encontra gente pra colher. Elimina-se esse problema e ainda se agrega diversão ao cliente”.
São realizadas também pesquisas que envolvem o florescimento das plantas, como é o caso de um estudo desenvolvido em um pomar de jabuticabeiras que fazia parte do turismo rural de Porto Alegre. Os pesquisadores notaram que essa espécie floresce quando chove após um período de seca. Com base nisso, Paulo e Tais Altmann, sua orientanda no mestrado em Fitotecnia, em conjunto com pesquisadores da área de agrometeorologia, estão desenvolvendo estudos com o objetivo de explicar os fatores que levam a jabuticabeira a florescer, utilizando equipamentos para avaliar a temperatura dentro da planta, a umidade, o vento e a água no solo, e fazendo experimentos com diferentes doses de irrigação, com o objetivo de induzir floradas fora de época – e já conseguiram alcançar de 4 a 5 floradas entre a primavera e o verão.
Outra possibilidade é a utilização das frutíferas para servir como alternativa de alimento às aves, especialmente no caso do araçá, bastante atrativo para os animais. “Na área de viticultura, por exemplo, a pior praga que a gente está encontrando próximo à região metropolitana é passarinho, porque tem pássaro de montão, e não tem comida. Aí, eles vão na uva. Inclusive, um dos trabalhos iniciais que fiz há uns 15, 20 anos para um amigo meu que tinha vinhedo na região foi plantar vários araçazeiros por perto, para ter frutas na mesma época, e diminuiu o problema com os pássaros”, comenta.
As nativas são também ótima opção para arborização urbana, conta, como é o caso do jerivá. Com uma raiz que dificilmente estragará o calçamento e tronco reto, que evita o problema de bater nos fios de luz, é uma planta relativamente fácil de manejar. Outra possibilidade, segundo o professor, é utilizar árvores menores, como pitangueira e o pé de feijoa (goiaba-serrana).
Diversidade e principais descobertas
Para Paulo, entre as principais descobertas do grupo está a variedade entre as plantas. “O que nos impressiona é a diversidade que existe dentro das nativas e a diversidade de tipos de planta nos diversos aspectos – o porte, as épocas de florescimento, os tipos de fruto, a quantidade de açúcar, de ácido, de vitaminas e de componentes nutracêuticos. E a nossa preocupação é manter essa variedade”, enfatiza. Os butiazeiros plantados na Estação Experimental são exemplo dessa heterogeneidade: “todos os butiás são tirados de uma única planta, e você vai ver plantas completamente diferentes, em termos de porte, tamanho do fruto, cacho… É uma diversidade imensa. E todas elas são assim: pitanga, jabuticaba… Essa é a parte bonita de tentar propagar”, complementa.
A outra grande surpresa do grupo é a facilidade com que está conseguindo multiplicar as plantas. “De semente, germinam e produzem tranquilo. Nossa dúvida era com plantas que são difíceis de enraizar a partir das estaquinhas, e, com elas, a gente tem tido facilidade.”
Recuperação de áreas
Se, por um lado, a valorização das nativas traz inúmeras possibilidades, por outro, a crescente procura, aliada à falta de fiscalização, pode levar à degradação e ao desaparecimento dessas plantas. “Agora todo mundo dá valor, tanto é que tem falta de mudas de nativas. E aí há o risco de o pessoal tirar da natureza, porque uma planta dessas leva quantos anos para ficar adulta… Hoje em dia ninguém quer esperar dez anos. Se o cara tem dinheiro, já manda trazer uma planta adulta”, comenta Paulo.
“A gente se assustava, e ainda se assusta, porque estavam simplesmente desaparecendo as nativas, e, inclusive, em algumas regiões ainda tem acontecido de desaparecerem os butiazais”, completa, contando que acontecia de empresas arrancarem butiazeiros adultos clandestinamente para colocar em condomínios. Outro problema é o desmatamento para fazer lavouras e a criação de gado, “que não destrói os butiazais diretamente, mas toda semente que cai no chão ou plantinha que germina o gado come. Não tem renovação. Essas plantas, em alguns anos, vão acabar morrendo, como qualquer organismo, e não temos essa renovação”.
Paulo conta que, inclusive, há trabalhos no sentido de cercar territórios para não deixar os animais entrarem e de estudar quanto tempo leva para regenerar as áreas. “Eu era um que achava que um butiazeiro levava dez anos para produzir, mas nós vimos que, cuidando, adubando direitinho, no terceiro ano já está produzindo. Temos plantas lá na Estação em que o cacho bate no chão”, conta.
Relação com os produtores e a sociedade
A divulgação do trabalho aos produtores, viveiristas e consumidores é uma das preocupações do grupo de pesquisa. Além de dissertações, teses e artigos científicos, foram criadas disciplinas de graduação sobre o assunto e ministrados seminários, oficinas e cursos de extensão abertos à comunidade, como os de pomar doméstico e de hortas para pequenos espaços.
Além disso, é intensa a troca de informações com os produtores durante todo o processo da pesquisa. São frequentes as visitas aos viveiros e pomares, e alguns estudos, como o relativo ao florescimento das jabuticabeiras, citado acima, são feitos diretamente na propriedade, “e o produtor e seus funcionários acompanham, estão no dia a dia com a gente, então, automaticamente, a informação é repassada para ele”, comenta Paulo.
“Nosso trabalho é muito de escutar o produtor em todas as áreas que a gente tem trabalhado”, salienta. Uma das coisas de que um produtor se queixou, por exemplo, era de as jabuticabeiras serem muito grandes, e ele tinha dificuldades em subir para colher. Assim, são feitos também experimentos de poda. “É diferente do pessegueiro, da macieira, que há 200 anos o pessoal sabe como se poda e qual a melhor maneira para dar frutos mais bonitos. Estamos fazendo diferentes tipos de poda para facilitar a vida do produtor, até porque, hoje em dia, a mão de obra é um grande gargalo.”
Continuidade da pesquisa
Apesar de o projeto inicial, com financiamento do CNPQ, já ter sido finalizado, os grupos seguem os trabalhos. Na linha de propagação, por exemplo, o método de multiplicação por clones foi testado com algumas espécies. “Pitangueira, araçazeiro e jabuticabeira, por exemplo, já conseguimos produzir mudas sem problemas”, conta Paulo. A ideia, agora, é ampliar o trabalho para outras variedades, como para os pés de sete-capotes, guabiroba e goiaba serrana. “Assim como nas outras linhas de pesquisa, pegamos quatro ou cinco espécies-chefe para trabalhar, e agora é tentar expandir”, declara o professor.
Para o butiazeiro, por exemplo, o grupo já tem bastante informação, “só que ainda não conseguimos pegar o galhinho e fazer enraizar. Para palmeiras de modo geral, a propagação é só pela semente. E isso, pensando em padronização, é complicado, porque vai ter diversidade”. Assim, o grupo está realizando também trabalhos de cultivo in vitro, com a intenção de criar clones a partir da meristema, um tecido encontrado em todas as plantas, constituído por células indiferenciadas, que, em função análoga à das células-tronco nos animais, são caracterizadas pela capacidade de se dividir indefinidamente, produzindo as novas células necessárias ao crescimento da planta. “Também temos linhas novas dentro do trabalho e todo um potencial por desenvolver. É bem desafiador e bem bonito”, enfatiza Paulo.
O pesquisador também aponta dificuldades devido à crise econômica e aos cortes de verbas. “A fonte secou, então tivemos que enxugar bastante, dar uma diminuída. Antes, íamos para o estado inteiro. E, agora, temos que dar uma segurada nos gastos com combustível, diárias… Mas, como tem bastante material por perto, a gente não precisou parar. Por alguns anos, a gente vai conseguir tocar os trabalhos”, afirma.
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