A
fome é, conforme tantas vezes tenho afirmado, a
expressão biológica de males sociológicos. Está intimamente ligada com as
distorsões econômicas, a que dei, antes de
ninguém, a designação de
<>.10
A fome é um fenômeno geograficamente
universal, a cuja ação nefasta nenhum
continente escapa. Toda a terra dos homens foi,
até hoje, a terra da fome. As investigações
científicas, realizadas em todas as partes do
mundo, constataram o fato inconcebível de que
dois terços da humanidade sofre, de maneira
epidêmica ou endêmica, os efeitos destruidores
da fome.5
A fome não é um produto da
superpopulação: a fome já existia em massa
antes do fenômeno da explosão demográfica do
após-guerra. Apenas esta fome que dizimava as
populações do Terceiro Mundo era escamoteada,
era abafada era escondida. Não se falava do
assunto que era vergonhoso: a fome era tabu.4
No mangue, tudo é, foi ou
será caranguejo, inclusive o homem e a lama.1
Não foi na Sorbonne, nem em
qualquer outra universidade sábia que travei
conhecimento com o fenômeno da fome. A fome se
revelou espontaneamente aos meus olhos nos
mangues do Capiberibe, nos bairros miseráveis do
Recife - Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do
Leite. Esta foi a minha Sorbonne. A lama dos
mangues de Recife, fervilhando de caranguejos e
povoada de seres humanos feitos de carne de
caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo.1
São seres anfibios -
habitantes da terra e da água, meio homens e
meio bichos. Alimentados na infância com caldo
de caranguejo - este leite de lama -, se faziam
irmãos de leite dos caranguejos.1
Cedo me dei conta desse
estranho mimetismo: os homens se assemelhando em
tudo aos caranguejos. Arrastando-se,
acachapando-se como caranguejos para poderem
sobreviver.1
A impressão que eu tinha, era
de que os habitantes dos mangues - homens e
caranguejos nascidos à beira do rio - à medida
que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais
na lama.1
Foi assim que senti formigar
dentro de mim a terrível descoberta da fome.1
Pensei a princípio que era um
triste privilégio desta área onde eu vivo - a
área dos mangues. Depois verifiquei que, no
cenário de fome do Nordeste, os mangues eram uma
verdadeira terra da promissão, que atraía
homens vindos de outras áreas de mais fome ainda
- das áreas da seca e da monocultura da
cana-de-açúcar, onde a indústria açucareira
esmagava, com a mesma indiferença, a cana e o
homem, reduzindo tudo a bagaço.1
Vê-los agir, falar, lutar,
viver e morrer, era ver a própria fome modelando
com suas despóticas mãos de ferro, os heróis
do maior drama da humanidade - o drama da fome.1
E foi assim que, pelas
história dos homens e pelo roteiro do rio,
fiquei sabendo que a fome não era um produto
exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas
atraíram os homens famintos do Nordeste: os da
zona da seca e os da zona da cana. Todos
atraídos por esta terra de promissão, vindo se
aninhar naquele ninho de lama, construído
pelos dois e onde brota o maravilhoso ciclo do
caranguejo. E quando cresci e saí pelo mundo
afora, vendo outras paisagens, me apercebi com
nova surpresa que o que eu pensava ser um
fenômeno local, era um drama universal. Que a
paisagem humana dos mangues se reproduzia no
mundo inteiro. Que aqueles personagens da lama do
Recife eram idênticos aos personagens de
inúmeras outras áreas do mundo assolados
pela fome. Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera
na infância, continua sujando até hoje toda a
paisagem de nosso planeta como negros borrões de
miséria: as negras manchas demográficas da
geografia da fome.1
O assunto deste livro é
bastante delicado e perigoso. A tal ponto
delicado e perigoso que se constituiu num dos
tabus de nossa civilização. É
realmente estranho, chocante o fato de que, num
mundo como o nosso, caracterizado por tão
excessiva capacidade de escrever-se e
publicar-se, haja até hoje tão pouca coisa
escrita acerca do fenômeno da fome, em suas
diferentes manifestações.2
Quais são os fatores ocultos
desta verdadeira conspiração de silêncio em
torno da fome? Trata-se de um silêncio
premeditado pela própria alma da cultura: foram
os interesses e os preconceitos de ordem moral e
de ordem política e econômica de nossa chamada
civilização ocidental que tomaram a fome um
tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável
de ser abordado publicamente.2
Ao lado dos preconceitos
morais, os interesses econômicos das minorias
dominantes também trabalhavam para escamotear o
fenômeno da fome do panorama espiritual moderno.
É que ao imperialismo econômico e ao comércio
internacional a serviço do mesmo interessava que
a produção, a distribuição e o consumo dos
produtos alimentares continuassem a se processar
indefinidamente como fenômenos exclusivamente
econômicos - dirigidos e estimulados dentro de
seus interesses econômicos - e não como fatos
intimamente ligados aos interesses da saúde
pública.2
Um dos grandes obstáculos ao
planejamento de soluções adequadas ao problema
da alimentação dos povos reside exatamente no
pouco conhecimento que se tem do problema em
conjunto, como um complexo de manifestações
simultaneamente biológicas, econômicas e
sociais.2
Por outras palavras,
procuraremos realizar uma sondagem de natureza
ecológica, dentro deste conceito tão fecundo de
Ecologia, ou seja, do estudo das ações e
reações dos seres vivos diante das influências
do meio.2
Neste ensaio de natureza
ecológica tentaremos, pois, analisar os hábitos
alimentares dos diferentes grupos humanos ligados
a determinadas áreas geográficas, procurando de
um lado, descobrir as causas naturais e as causas
sociais que condicionaram o seu tipo de
alimentação, com suas falhas e defeitos
característicos, e de outro lado, procurando
verificar até onde esses defeitos influenciam a
estrutura econômico-social dos diferentes grupos
estudados.2 |
O
objetivo é analisar o fenômeno da fome coletiva
- da fome atingindo endêmica ou epidemicamente
as grandes massas humanas. Não só a fome total,
a verdadeira inanição que os povos de língua
inglesa chamam de starvation, fenômeno, em
geral, limitado a áreas de extrema miséria e a
contingências excepcionais, como o fenômeno
muito mais freqüente e mais grave, em suas
consequencias numéricas, da fome parcial,
da chamada fome oculta, na qual pela falta
permanente de determinados elementos nutritivos,
em seus regimes habituais, grupos inteiros de
populações se deixam morrer lentamente de fome,
apesar de comerem todos os dias. É
principalmente o estudo dessas coletivas fomes
parciais, dessas fomes específicas, em sua
infinita variedade, que constitui o objetivo
nuclear do nosso trabalho.
2
É que existem duas maneiras de morrer
de fome: não comer nada e definhar de maneira
vertiginosa até o fim, ou comer de maneira
inadequada e entrar em um regime de carências ou
deficiências específicas, capaz de provocar um
estado que pode também conduzir à morte. Mais
grave ainda que a fome aguda e total, devido às
suas repercussões sociais e econômicas, é o
fenômeno da fome crônica ou parcial, que
corrói silenciosamente inúmeras populações do
mundo.5
A noção que se tem,
correntemente, do que seja a fome é, assim, uma
noção bem incompleta. E este deconhecimento,
por parte das elites européias, da realidade
social da fome no mundo e dos perigos que este
fenômeno representa para a sua estabilidade
social, constitui uma grave lacuna tanto para a
análise dos acontecimentos políticos da
atualidade, que se produzem em diversas regiões
da terra, como no que se refere à atitude que os
países da abundância deveriam ter face aos
países subdesenvolvidos, permanentemente
perseguidos pela penúria e pela miséria
alimentar.4
O ITERRA,
juntamente com o MST
e a CONCRAB,
tem a honra de convidar Vossa Senhoria
para a inauguração da ESCOLA
JOSUÉ DE CASTRO, no dia 24
de outubro de 1997, com início às 10
horas, no Instiuto de Veranópolis - RS.
Contamos com vossa presença!
REFORMA AGRÁRIA:
UMA LUTA DE TODOS!
|
Nenhum fator é
mais negativo para a situação de abastecimento
alimentar do país do que a sua estrutura
agrária feudal, com um regime inadequado de
propriedade, com relações de trabalho
socialmente superadas e com a não utilização
da riqueza potencial dos solos.2
Apresenta-se deste modo a
Reforma Agrária como uma necessidade histórica
nesta hora de transformação social que
atravessamos como um imperativo nacional.2
É que cerca de 60% das
propriedades agrícolas no Brasil são
constituídas por glebas de áreas superiores a
50 hectares de terra, das quais 20% possuem mais
de 10.000 hectares. No recenseamento de 1950
ficou evidenciada a existência no Brasil de
algumas dezenas de propriedades que são
verdadeiras capitanias feudais:proriedades com
mais de 100.000 hectares de extensão.2
Do latifúndio decorre também
a existência das grandes massas dos sem-terra,
dos que trabalham na terra alheia, como
assalariados ou como servos explorados por esta
engrenagem econômica de tipo feudal. Por sua
vez, o minifúndio significa a exploração
antieconômica da terra, a miséria crônica das
culturas de subsistência que não dão para
matar a fome da família.2
O tipo de reforma que julgamos
imperativo da hora presente não é um simples
expediente de desapropriação e redistribuição
da terra para atender às aspirações dos
sem-terra. Processo simplista que não traz
solução real aos problemas da economia
agrária. Concebemos a reforma agrária como um
processo de revisão das relações jurídicas e
econômicas, entre os que detêm a propriedade
agrícola e os que trabalham nas atividades
rurais.
Precisamos enfrentar o tabu da
reforma agrária - assunto proibido, escabroso,
perigoso - com a mesma coragem com que
enfrentamos o tabu da fome. Falaremos abertamente
do assunto, esvaziando desta forma o seu
conteúdo tabu, mostrando através de uma larga
campanha esclarecedora que a reforma agrária
não é nenhum bicho-papão ou dragão maléfico
que vá engolir toda a riqueza dos proprietários
de terra, como pensam os mal-avisados, mas que,
ao contrário, será extremamente benéfica para
todos os que participam socialmente da
exploração agrícola...2
É evidente que não bastaria
dispor de alimentos em quantidade suficiente e
suficientemente diversificados para cobrir as
necessidades alimentares da população mundial.
O problema da fome não é apenas um problema de
produção insuficiente de alimentos. É preciso
que a massa desta população disponha de poder de
compra para adquirir estes alimentos.4
A fome age não apenas sobre os
corpos das vítimas da seca, consumindo sua
carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas
em sua pele, mas também age sobre seu espírito,
sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta
moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a
personalidade humana tão profundamente e num
sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge
os limites da verdadeira inanição. Excitados
pela imperiosa necessidade de se alimentar, os
instintos primários são despertados e o homem,
como qualquer outro animal faminto, demonstra uma
conduta mental que pode parecer das mais
desconcertantes.5
Querer justificar
a fome do mundo como um fenômeno natural e
inevitável não passa de uma técnica de
mistificação para ocultar as suas verdadeiras
causas que foram, no passado, o tipo de
exploração colonial imposto à maioria dos
povos do mundo, e , no presente, o
neocolonialismo econômico a que estão
submetidos os países de economia primária,
dependentes, subdesenvolvidos, que são também
países de fome.4
As massas humanas se deram
conta de que a fome e a miséria não são
indispensáveis ao equilíbrio do mundo, e que
hoje, graças aos progressos da ciência e da
técnica, surgiu pela primeira vez na história
um tipo de sociedade na qual a miséria pode ser
suprimida e com ela a fome.12
(1992) - Capítulo 3
A erradiação da pobreza e da fome,
maior equidade na distribuição de renda
e desenvolvimento de recursos humanos:
esses desafios continuam sendo
consideráveis em toda parte. O combate
à pobreza é uma responsabilidade
conjunta de todos os países. |
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