Grandes centros urbanos e água de qualidade em
quantidades suficientes para todos nem sempre é uma combinação
possível, especialmente num planeta em que a escassez hídrica atingiu
35% da população mundial em 2005. Mas na cidade de Nova York – uma das
líderes das chamadas “cidades elite”, segundo ranking de 2016 de cidades
globais da AT Kerney –, a água que chega às torneiras de 9 milhões de
pessoas tem origem em fontes superficiais, dispensa tratamento e recebe
apenas cloro e flúor antes de ser distribuída.
Tema fascinante para geógrafos, ambientalistas e gestores públicos, o
sistema de abastecimento do estado de Nova York prova que empresas,
sociedades e governos podem prosperar ao investir na natureza. A
estratégia de conservação dos mananciais economizou ao estado de Nova
York valores da ordem de US$ 6 a US$ 8 bilhões e custos operacionais de
US$ 300 milhões por ano, totais estimados para a construção e manutenção
de uma estação de tratamento no sistema Catskill/Delaware.
A famosa cadeia de montanhas de Catskill,
a oeste das nascentes do Rio Hudson e a 160 quilômetros ao norte da
cidade de Nova York, é um reduto preservado que compõe o complexo
sistema de abastecimento do estado nova-iorquino. Além da estonteante
paisagem que inspira artistas e atrai praticantes de diversas
modalidades esportivas, o lugar também guarda uma das mais bem sucedidas
histórias de pagamentos por serviços ambientais (PSA).
O modelo descentralizado de gestão hídrica ganhou força a partir de
1990, quando a cidade precisou reavaliar sua estratégia de abastecimento
público, diante das pressões estaduais e federais por padrões mais
rígidos de qualidade de suas águas de abastecimento público.
Em 1989, o comissário Albert Appeton, da Agência de Proteção
Ambiental (EPA) dos Estados Unidos, havia desenvolvido um conjunto de
regulamentos restringindo o desenvolvimento de atividades agrícolas e de
uso e ocupação do solo nas bacias hidrográficas da região, visando à
conservação dos mananciais.
Com os mananciais conservados, a cidade de Nova York manteria a
liberação de filtração de suas águas superficiais, já que o ecossistema
realizaria o trabalho de purificação da água.
Narrativa de um conflito hídrico
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Reservatório de New Croton é parte do sistema de abastecimento de NY, que hoje possui 19 represas |
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Entrevista
Notícias
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Ao olhar retrospectivamente a história da cidade
mais influente do mundo, é provável que sem água abundante, de fonte
segura e limpa, Nova York não tivesse alcançado o crescimento fenomenal
dos últimos dois séculos.
No início do século 19, os nova-iorquinos passaram por enormes perdas
sociais e econômicas após incêndios devastadores e epidemias de cólera,
infecção causada pela ingestão de água e alimentos contaminados. A
situação impulsionou as lideranças públicas a mergulhar num ambicioso
projeto com o objetivo de melhorar o que era uma mistura inadequada de
abastecimento público e privado.
Ainda em 1842, sob um Estado marcadamente tecnocrático, a cidade
passa a ser abastecida pelo reservatório de Croton, 65 quilômetros ao
norte da “Big Apple”. Nas décadas seguintes, gerações de líderes
escolheriam obter água pura ao menor custo possível, indo buscar o
recurso no extremo norte e oeste da cidade e, finalmente, nas montanhas
de Catskill, uma área preservada por leis estaduais.
Durante o século que se seguiu, as grandes obras de engenharia e a
expansão do sistema hídrico terminaram por constituir o que
alguns estudos como o de
Philip Steinberg e George Clark chamaram
de narrativa de um conflito hídrico. Algo muito familiar com o que
ocorre no Brasil, a “narrativa” descreve as relações sociais de uma
região “superior” e “poderosa” que extrai recursos de um lugar
“subordinado”, a partir de inundações e barragens.
Os deslocamentos de populações e a destruição de cidades inteiras
foram amparados por uma lei de 1905 que, por meio de “domínio eminente”,
permitiu à cidade de Nova York assegurar terras privadas fora dos
limites municipais e usá-las para a expansão e o desenvolvimento do
sistema de abastecimento. A medida foi empreendida por décadas e
fomentou um ressentimento entre os moradores do norte e do sul do estado
que persistiu até recentemente, informa
reportagem do New York Times de 1990, assinada por Allan Gold (
"New York's Water Rules Worry Catskills").
No que se refere à impressionante estrutura física, a rede de
abastecimento de Nova York é hoje constituída por três lagos controlados
e 19 reservatórios distribuídos em mais de 5 mil quilômetros quadrados,
que fornecem cerca de 5 bilhões de litros de água por dia para a cidade
e condados vizinhos.
O Memorandun of Agreement (MOA) de 1997
representou um marco na gestão hídrica de Nova York. Com a assinatura
de centenas de atores sociais, documento estabeleceu um amplo acordo de
pagamentos por serviços ambientais, assistência técnica para o manejo
seguro das atividades produtivas realizadas na bacia hidrográfica e um
programa de compra de terras e de compensações por servidão.
Servicos Ecossistêmicos
Atualmente, o novo grande desafio de Nova York é manter a pureza da
água que captou tão longe, satisfazendo aos restritivos padrões exigidos
pela legislação federal norte-americana. “O sistema de abastecimento de
Nova York é impressionante e muito elogiado, mas não é perfeito. A
cidade de Nova York vem obtendo sucessivas licenças que a liberam da
filtração. Mas há sempre o risco de contaminação devido aos tipos de uso
e ocupação do solo do entorno dos mananciais”, afirma
Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
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Serviços ambientais garantidos em acordo comunitário e nas ações de conscientização sobre o meio ambiente |
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Sistema de abastecimento da cidade de Nova York |
Impedimentos ambientais, políticos e financeiros
não permitem mais que a cidade continue a buscar por soluções de
engenharia, apenas. Tornou-se necessária uma arena institucional
complexa, formada pelo pacto de inúmeros atores sociais e uma
diversidade de interesses, na busca de um objetivo comum: água limpa,
que depende de mananciais resilientes, que dependem da conservação da
natureza.
A ecologia política da gestão das águas urbanas passou por uma
mudança de paradigma na década de 1970, em parte devido ao novo marco
legal ambiental, inaugurado com a lei federal do Safe Drinking Water Act
(SDWA) de 1974.
Emendas de 1986 ao Safe Drinking Water Act (SDWA) e uma nova
legislação federal de 1989 para águas superficiais pressionavam a cidade
para a necessidade de filtração e desinfecção de suas águas.
Ao mesmo tempo, as regiões do entorno dos mananciais que abastecem
grande parte do estado de Nova York passavam por uma expansão
populacional a partir da década de 1980, com a consequente
intensificação do uso do solo e das atividades produtivas.
Afinal, o
Memorandun of Agreement (MOA) de 1997 representou um marco na gestão hídrica do estado. O
New York Watershed Agreement reconhece Catskills como uma reserva de água "tremendamente valiosa" e
contou
com as assinaturas da prefeitura nova-iorquina, outras 73
municipalidades e 30 comunidades do entorno das bacias, além de cinco
organizações não governamentais, mostra o artigo de Mark Pires, professor da Long Island University, e também o estudo de Gilles Grolleau e Laura M.J. McCann.
O documento estabeleceu um amplo acordo de pagamentos por serviços
ambientais, assistência técnica para o manejo seguro das atividades
produtivas realizadas na bacia hidrográfica e um programa de compra de
terras e de compensações por servidão. Os fazendeiros foram nomeados
“guardiões da água” e passaram a ser remunerados pelos serviços
ambientais prestados.
A prefeitura melhorou também o sistema de esgotos instalando pequenas
plantas de tratamento para os despejos das atividades agrícolas e
pastoris da região. Seu orçamento original para a aquisição de terras
passou de cerca de US$ 300 milhões para US$ 580 milhões. O acordo entre
os diversos atores foi estimado em US$ 1,4 bilhão, uma economia
significativa diante dos custos da construção de uma estação de
tratamento, mostram Grolleau e McCann.
Mas um grande problema ainda era a poluição difusa. Os autores
explicam que as leis bastante exigentes sobre esse aspecto poderiam
minar a autonomia privada sobre a propriedade da terra, o que revoltou
muitos agricultores. Para esses estudiosos, a insatisfação sobre o uso
da propriedade privada e a diversidade de atores sociais resultou no
aumento dos custos de transação do pacto firmado em 1997.
Finalmente, a saída para o conflito veio por meio da aproximação da
Prefeitura e do Departamento de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em
inglês) com os técnicos do Departamento de Agricultura do Estado de Nova
York, que tinha um relacionamento de longa data com os produtores
rurais. A confiança foi se firmando, alguns mitos e preconceitos foram
quebrados e assim o acordo foi estabelecido, discorre Albert Appleton,
ex-diretor da agência de águas e esgoto de Nova York e ex-comissário da
EPA, em
artigo publicado na plataforma interativa
Watershed Connect, da Forest Trends.
“Mesmo com a existência de parques e áreas de preservação, ainda há
muitos moradores e diversas atividades rurais e turísticas em Catskills e
bacias próximas. Contudo, conseguiram fazer um acordo bastante
criativo e razoavelmente equitativo que afinal consegue manter a alta
qualidade da água de Nova York. Inclusive o esquema de Catskills tem
sido modelo para outros sistemas de PSA ao redor do mundo”, afirma Phil
Coven, que foi diretor associado e gerente sênior de projetos na ONG
Forest Trends, onde atualmente presta consultoria.
Coven cita o programa Cultivando Água Boa,
realizado na bacia hidrográfica do Paraná 3 e entorno da represa de
Itaipu, como um dos mais bem sucedidos entre as iniciativas de PSA
hidrológico do Brasil. “A sociedade está despertando para os benefícios
de investir na natureza”, afirma.
O estado de São Paulo inaugurou há pouco mais de um ano o Programa Nascentes, apresentado em matéria sobre PSA publicada
recentemente no site do IEA. Mas enquanto os projetos baseados em
incentivos econômicos do tipo PSA não deslancham, ainda permanece o paradigma hidráulico dos séculos 19 e 20, baseado em obras de grande impacto ambiental e na busca de fontes cada vez mais distantes. Em entrevista, o secretário de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de São Paulo, Benedito Braga, falou ao IEA sobre as políticas de abastecimento do governo estadual.
Segundo levantamento da Forest Trends de 2014, governos e empresas ao
redor do mundo investiram US$ 12,3 bilhões em iniciativas de
conservação visando a provisão de serviços ecossistêmicos relacionados à
produção de água.