terça-feira, 12 de abril de 2022

Menos carne vermelha, mais variedade: dieta mista pode ser caminho para sustentabilidade e segurança alimentar. usp

 

Menos carne vermelha, mais variedade: dieta mista pode ser caminho para sustentabilidade e segurança alimentar

Pesquisa da USP em Piracicaba mostrou que mudanças simples na alimentação já poderiam contribuir para mitigação das mudanças climáticas

  Publicado: 04/04/2022  Atualizado: 05/04/2022 as 11:20

Autor: Fabiana Mariz

Arte: Guilherme Castro/Jornal da USP

Se o consumo de carne vermelha no Brasil fosse substituído por uma alimentação diversa, composta de proteínas animal e vegetal, 809 milhões de hectares (Mha) poderiam ser poupados, 1 bilhão de toneladas de carbono equivalente deixaria de ser emitido e 720 trilhões de litros de água poderiam ser economizados. Esses são alguns dos resultados do mestrado de Ana Chamma, realizado na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP.

Sob orientação de Gerd Sparovek, professor da Esalq e coordenador do Geolab, Ana, que é engenheira sanitarista e ambiental, desenvolveu seu trabalho com o objetivo de apresentar uma nova abordagem para garantir a segurança alimentar da população brasileira e, ao mesmo tempo, a sustentabilidade do País.

Outro dado interessante foi que a dieta da região Centro-Oeste, baseada em carne bovina, causa os maiores impactos, tanto no uso da terra como no uso da água. Além disso, emite mais gases de efeito estufa no ambiente.

Já a baseada em peixes e frutos do mar, consumida em regiões nordestinas, é a que gera os menores danos. 

O consumo alimentar tende a crescer nas próximas décadas, especialmente os de origem animal, ao mesmo tempo em que as áreas disponíveis ficarão cada vez mais escassas. Ana disse ao Jornal da USP que as soluções existentes para enfrentar esse problema geralmente estão focadas na expansão de novas áreas para produção ou no aumento do rendimento de terras agricultáveis, sem considerar a real demanda por alimentos. “Quando se pensa em mudanças climáticas, geralmente se olha para o transporte, para a energia, mas a alimentação também é um ponto que merece a nossa atenção.”

“A inversão de lógica veio da Ana. Ela entendeu que, com a inversão, os resultados seriam mais facilmente comunicados e entendidos por não especialistas no assunto. E deu certo, foi uma grande ideia”, comemora Sparovek. 

Pensando nisso, a pesquisadora propôs uma nova metodologia, denominada “da mesa ao campo”. Ao invés de se pensar na expansão de ofertas de alimentos, Ana focou em reduzir o impacto ambiental por meio da demanda alimentar. 

Ana Letícia Chamma - Foto: Reprodução/Facebook

Ana Letícia Chamma - Foto: Reprodução/Facebook

Na primeira parte, testou-se a possibilidade de expandir as áreas para a produção agrícola a partir de uma dieta urbana brasileira, definida pelos dados contidos na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2008/2009. 

O uso da terra, as pegadas de carbono (medida que calcula a emissão de carbono equivalente na atmosfera por uma pessoa, atividade, evento, empresa, organização ou governo) e hídrica (indicador do volume de água doce gasto na produção de bens e serviços) foram analisados em oito cenários, que consideram diferentes tipos de níveis de produtividade e de perda de alimento. 

Para o cenário que representa o sistema atual, estimou-se que 292 Mha devem ser utilizados no Brasil somente para atender às necessidades da população. Dados do MapBiomas mostram que, atualmente, a agropecuária ocupa cerca de 30% do território nacional (algo em torno de 225 Mha), sendo 167 Mha compostos de áreas de pastagem, 64 Mha de áreas agrícolas e 24 Mha de áreas de uso não definido (uma espécie de mosaico de pastagem e agricultura). 

Se considerarmos a projeção de crescimento do número de habitantes para o ano de 2050, e caso nada se altere, o uso requerido pela dieta urbana seria de 321 Mha.

Já em situações em que as medidas de redução de perda de alimentos e ganho de produtividade foram adotadas, 53 Mt de carbono equivalente e 43 trilhões de litros de água poderiam ser preservados no Brasil anualmente.

Em uma outra etapa, a engenheira investigou de que forma as diferentes dietas brasileiras provocam danos ao planeta e se uma mudança de hábitos alimentares trazem algum efeito positivo. 

“Acreditamos que mudanças simples, como consumir diferentes tipos de proteínas em uma semana, poderiam minimizar esses danos”, afirma Ana. “Integrar medidas de intensificação na produtividade agropecuária e redução na perda de alimentos, aliados à modificação de hábitos alimentares, é uma alternativa para mitigação de mudanças climáticas”. 

Desafios

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) prevê que 9 bilhões de pessoas habitem a Terra no ano de 2050 , ou seja, teremos ao menos 1 bilhão de pessoas a mais no planeta necessitando de alimentação daqui a 30 anos.

Garantir alimentos suficientes para essas pessoas – de forma qualitativa e quantitativa – e que eles sejam oriundos de sistemas sustentáveis é um dos grandes desafios do século 21. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – um apelo da Organização das Nações Unidas à ação para acabar com a pobreza, proteger o planeta e assegurar que todas as pessoas tenham paz e prosperidade – por exemplo, são compostos de 17 metas. Uma delas é a promoção do Fome Zero no mundo. 

Dados apontam que, no Brasil, de 1985 a 2018, as áreas destinadas à agricultura aumentaram 2,5%, e as pastagens cresceram 37%. Já as áreas de vegetação nativa caíram 13%. 

Foi pensando em todo esse cenário – e também em apresentar uma solução sustentável para o planeta -, que Ana desenhou o seu estudo. O primeiro capítulo teve como objetivo compreender a real necessidade do uso dos recursos para a produção de alimentos a partir da demanda alimentar da população. 

Figura 1. Etapas metodológicas para a quantificação de variáveis ambientais seguindo a abordagem “da mesa ao campo” – Foto: Ana Letícia Sbitkowski Chamma

A dieta adotada pela pesquisadora foi a urbana – por representar a região onde mora a maior parte da população brasileira – e era composta de cinco refeições diárias (café da manhã, almoço, lanche da tarde, janta e ceia) baseadas nas quantidades de alimentos registrados pela POF. 

Foto: Ana Letícia Sbitkowski Chamma

Em seguida, a pesquisadora fez a correspondência entre esses produtos e os dados de produtividade. Na etapa seguinte, integrou essas informações com as de variáveis ambientais disponíveis em outra pesquisa, feita por Josefa Garzillo, na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. 

Foram criados oito cenários, que combinaram produtividades atuais e futuras e níveis de perdas de alimentos em todo o sistema agroalimentar. 

O primeiro deles levou em consideração a produtividade para os anos de 2017/2018 sem nenhuma perda no sistema. “É um cenário fictício, mas importante para compreender o efeito das perdas de alimentos na geração dos impactos ambientais abordados”, explica Ana.

Já os subsequentes foram simulados utilizando-se a produtividade dos anos 2017/2018 e as perdas em diferentes níveis (ambiente doméstico, na produção agrícola, na colheita, armazenamento, processamento e empacotamento, varejo e distribuição). 

Segundo Sparovek, o desafio, do ponto de vista metodológico, foi maior do que normalmente se vê em dissertações de mestrado. “A combinação de dados que usamos não é fácil de ser feita, exige muito conhecimento sobre as bases e de operações em banco de dados. Ana conseguiu fazer isto por ter se dedicado à iniciação científica desde a graduação e ter acompanhado outros trabalhos do nosso laboratório”, relata o orientador.

Para este sistema, estimou-se que 292 Mha devam ser utilizados no Brasil somente para o atendimento das necessidades da população brasileira. Levando em conta a projeção de crescimento populacional para o ano de 2050, o uso requerido pela dieta urbana seria de 321 Mha, caso nada se altere. 

Por meio da redução de perdas e ganho de produtividade, 53 Mt de carbono equivalente poderiam ser reduzidas e 43 trilhões de litros de água preservados. Para os cenários otimizados, caso houvesse a intensificação da pecuária e/ou redução de perdas de alimentos, a expansão de áreas não seria necessária para atender às demandas futuras (2050).

“A situação perfeita viria do aumento de produtividade aliado à diminuição das perdas no sistema”, explica a pesquisadora.

Dietas por região e campanhas

No meio do caminho, a engenheira identificou a quantidade de terra necessária para gerar produtos de origem animal e vegetal. Para a produção animal, seriam necessários cerca de 195 Mha e para a vegetal, 48 Mha. “É uma diferença muito grande”, diz Ana. “Nesta etapa, conseguimos pistas sobre qual dieta seria mais sustentável.” 

O segundo capítulo teve como objetivo identificar a magnitude dos impactos gerados pelo consumo de alimentos, tais como o uso da terra, a emissão de gases de efeito estufa e os recursos hídricos. Além disso, buscou-se compreender se a mudança de hábitos alimentares poderia ter alguma relevância no controle das mudanças climáticas. 

Para essa etapa, a metodologia adotada foi a mesma. O banco de dados foi ampliado e houve a elaboração de 17 dietas, divididas em quatro grandes grupos: regionais, situação domiciliar, classe de renda e modelos. “Todos os cardápios continham o mesmo consumo calórico, mas com a introdução de uma proteína diferente em cada um deles”, explica.

Foto: Ana Letícia Sbitkowski Chamma

Quatro cenários foram simulados e o efeito de duas campanhas que incentivam a mudança de hábitos alimentares foi analisado. 

Segunda sem carne, realizado em parceria com a Sociedade Vegetariana Brasileira (SBV), busca informar e conscientizar a população sobre os impactos do uso de produtos de origem animal na sociedade, na saúde, nos animais e no planeta, além de incentivar a substituição de carnes por vegetais ao menos uma vez na semana. 

Já a campanha Less is More – Reducing Meat and Dairy for a healthier life and planet, lançada pelo Greenpeace, quer reduzir em 50% o consumo de todos os tipos de carne e derivados em todo o mundo até 2050. 

Menos carne vermelha, mais sustentabilidade

As análises das dietas regionais mostraram que o cardápio da região Centro-Oeste do País causa os maiores impactos, tanto no uso da terra quanto na emissão de GEE e no uso da água, devido ao maior consumo de proteína bovina no cardápio. O consumo exige uma área 1,4 vezes maior do que as dietas no Norte, Sul e Sudeste e 2,5 vezes maior do que a da região Nordeste, que apresenta os menores impactos devido ao consumo de peixe. 

Os impactos gerados pelo consumo alimentar de diferentes grupos de classe de renda e situação domiciliar, bem como das regiões Norte, Sul e Sudeste, não apresentaram variação significativa. 

Tomando como referência a dieta da região Centro-Oeste, se o melhor cenário fosse adotado, 54 m2 diários per capita poderiam ser reduzidos para 29,1, ou seja, 1,8 vezes menos. Como os impactos nas pegadas hídricas e de carbono dependem do nível de perda de alimentos no sistema, no cenário em que ocorre a redução de perdas, 0,3 mil litros de água poderiam ser poupados e 0,5 kg de carbono equivalente por dia, por cada indivíduo, deixaria de ser emitido.

Dietas alternativas, principalmente as que consomem quantidades pequenas de carnes vermelhas, poderiam, se amplamente adotadas, reduzir a emissão de GEE na agricultura, reduzir a expansão de terra e gerar pegadas hídricas e de carbono muito menores. 

O grande consumo de carne bovina na dieta impacta 18 vezes mais o uso da terra do que uma à base de plantas.  “Me lembro que eu fiz um paralelo entre os extremos: se toda a população só comesse carne vermelha, seriam necessários quase 800 milhões de hectares por ano para dar conta dessa demanda; para a dieta vegana, 50 milhões de hectares seriam suficientes”, conta Ana.

A pesquisadora ressalta, ainda, que não precisamos ser tão radicais. “Não queríamos dar soluções totalmente fora da realidade. Se, durante a semana, consumíssemos proteínas animais diferentes em cada dia, dois dias de cardápio vegetariano e um dia de vegano, esse mix traria um resultado muito legal”, diz Ana. “Além disso, ter programas de conscientização em escolas e outras instituições, por exemplo, ajudaria a melhorar os resultados.”

Sparovek disse ao Jornal da USP conscientizar a todos que as escolhas das dietas impactam o ambiente de formas diversas é muito mais fácil.  “Temas mais abstratos e duros, como emissões de gases de efeito estufa ou biodiversidade, dificultam o entendimento”, garante o professor. “Esse conhecimento pode ajudar as pessoas a entenderem as conexões das suas escolhas, não só em relação às dietas, mas de outras dimensões do seu modo de vida com as questões ambientais.”

“Medidas que diminuam a perda de alimentos também devem estar no radar dos formadores de políticas públicas. No mundo, 1,3 bilhão de toneladas vão para o lixo anualmente. Muita gente não passaria fome”, conclui.

Mais informações: e-mail anachamma@usp.br, com Ana Letícia Sbitkowski Chamma


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.

segunda-feira, 11 de abril de 2022

Emergência climática: soluções existem, mas é preciso agir agora. USP

 

Emergência climática: soluções existem, mas é preciso agir agora

Emissões globais precisam cair 43% até 2030 para evitar aumento acima de 1,5 ºC, segundo o IPCC. Governo brasileiro divulgou meta menos ambiciosa do que a anterior

Tragédia de Petrópolis (RJ) em 2022 mostra o poder de destruição do clima - Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil

  Publicado: 08/04/2022  Atualizado: 11/04/2022 as 11:02

Autor: Herton Escobar

Arte: Rebeca Fonseca

“Ainda há tempo de evitar o pior das mudanças climáticas, mas esse tempo está se esgotando. É preciso agir já.” Se você acha que já ouviu essa mensagem antes — muitas vezes até, provavelmente —, sim, você está certo. Ela vem sendo repetida há anos, exaustivamente, pelos cientistas, e o problema é exatamente esse: o recado não muda porque a situação não muda (só piora) e o tempo disponível para agir está cada vez mais curto. 

Esse é o principal recado, mais uma vez, do sexto Relatório de Análise (AR6) do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), que teve seu terceiro e último fascículo publicado no início desta semana, 4 de abril. Os dois primeiros blocos (divulgados em agosto de 2021 e fevereiro de 2022) trataram das evidências científicas do aquecimento global, das suas consequências para o clima do planeta e para a espécie humana, e da necessidade urgente de preparação e adaptação a essas mudanças. Já este terceiro fascículo descreve o que é necessário fazer para impedir que a situação piore ainda mais daqui para frente — as chamadas “medidas de mitigação”. E atenção: o cenário não é nada bom.

Vamos aos números: as emissões globais de gases de efeito estufa (GEEs) na década de 2010 a 2019 foram as maiores de todos os tempos. Ou seja, a espécie humana nunca jogou tanto gás carbônico na atmosfera como agora, apesar de todos os alertas, desastres e acordos climáticos das últimas décadas. A média no período foi de 56 bilhões de toneladas lançados na atmosfera por ano; 9 bilhões a mais por ano do que na década anterior (2000-2009) e bem mais do que em qualquer outro período da história humana.

Cerca de dois terços dessas emissões, segundo o relatório, são de dióxido de carbono (CO2) gerado pela queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) na indústria, principalmente para a geração de energia e transportes. As emissões de CO2 oriundas das chamadas “mudanças de uso do solo e florestas” são 11% do total, enquanto que as de metano (CH4) respondem por 18%, segundo o relatório. É nessas duas últimas categorias que o Brasil dá sua maior contribuição para o aquecimento do planeta, por meio do desmatamento (que libera quantidades enormes de COpara a atmosfera) e da agropecuária (que é uma grande fonte de CH4), como mostra o último relatório do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima.

Diante deste cenário (que já elevou a temperatura média do planeta em 1ºC), a janela de oportunidade que a humanidade tem para frear as mudanças climáticas está mais apertada do que nunca. Ainda não se fechou por completo, mas resta apenas uma fresta — falta saber se vamos passar por ela. 

Para ter uma chance razoável (acima de 50%) de manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC — que é o “limite de segurança” estipulado pela ciência e definido como meta pelo Acordo de Paris — as emissões globais de GEE precisam parar de subir até 2025, no máximo, e depois cair 43% até 2030, segundo o relatório. Para um limite de 2ºC, essa redução precisa ser de 25%. 

De um jeito ou de outro, os cortes são grandes, e precisam começar imediatamente. Pelo andar da carruagem atual, se nada for feito além do que já está sendo feito agora, segundo o IPCC, o aumento de temperatura será de 3,2ºC em 2100; um cenário desastroso para o planeta. A previsão é que os eventos climáticos extremos se tornem cada vez mais frequentes à medida que a temperatura aumenta, potencializando o risco de falta de alimentos, falta de energia, escassez hídrica, extinção de espécies, incêndios, inundações, ondas de calor, enchentes e tempestades, como as que arrasaram a cidade de Petrópolis (RJ) no início deste ano. Entre outras ameaças. (No gráfico ao lado, a linha vermelha representa para onde estamos indo; as linhas verde e azul mostram para onde deveríamos ir para cumprir o Acordo de Paris.)

“Mais do que qualquer outro relatório lançado (até agora), este aponta a necessidade da urgência de redução de emissões”, disse o pesquisador Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, em um webinário sobre o tema, organizado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). “O relatório fala que nós precisamos agir já”, completou ele, ressaltando que as mudanças climáticas não são mais uma preocupação do futuro, mas “uma questão do presente”. 

Paulo Artaxo - Foto: Wikimedia

Reduzir as emissões rapidamente é absolutamente necessário, mas não suficiente, pois os gases do efeito estufa, ainda que em menor quantidade, continuarão se acumulando na atmosfera por longos períodos. Para frear de vez o aquecimento do planeta, segundo o IPCC, o mundo precisa se tornar “carbono neutro” por volta de 2050 (para estabilizar o aquecimento em 1,5ºC) ou 2070 (para o limite de 2ºC). Isso significa que todo o carbono lançado por atividades humanas na atmosfera precisa ser reabsorvido de alguma forma, seja por vias naturais ou tecnológicas. Para cada molécula de carbono que sobe, uma precisa descer.

“Para isso vamos ter que construir uma nova sociedade, muito diferente da que temos hoje; muito mais sustentável e com muito mais igualdade econômica e social”, disse Artaxo — um dos 21 cientistas brasileiros que participaram diretamente da confecção do relatório (AR6 completo), produzido por um exército científico de quase 800 autores e revisores internacionais, ao longo de sete anos, com base em dezenas de milhares de estudos publicados sobre o tema na literatura científica.

“É agora ou nunca, se quisermos limitar o aquecimento global a 1,5°C”, disse Jim Skea, especialista em clima e tecnologia do Imperial College London, que foi um dos coordenadores do Grupo de Trabalho 3 do IPCC (responsável por este último fascículo do relatório). “Sem reduções imediatas e profundas de emissões em todos os setores, será impossível.”

Ativistas levantam uma turbina eólica na África do Sul - Foto: Shayne Robinson / Greenpeace

Soluções limpas, boas e baratas

A boa notícia, em meio a esse cenário desalentador, é que “já temos todas as soluções tecnológicas que precisam ser implementadas” para dar essa guinada, “em todos os setores”, pontua Artaxo. E a custo relativamente baixo: segundo o IPCC, a adoção ampla de medidas com custo abaixo de US$ 100 por tonelada de gás carbônico já seria suficiente para reduzir pela metade as emissões globais de GEE até 2030, comparado a 2019. As opções estão aí, só falta vontade para implementá-las.

Um dos infográficos mais interessantes do novo relatório (SPM.7, disponível aqui) mostra a relação custo-benefício das várias estratégias atualmente disponíveis para mitigar o aquecimento global. A opção que se destaca como a mais barata e eficiente para reduzir emissões no curto prazo é a substituição de energia fóssil por energia solar e eólica — que, além de limpas e renováveis, tiveram seu custo de produção significativamente reduzido nos últimos dez anos. Em seguida aparecem estratégias ligadas ao setor de agricultura e florestas: redução do desmatamento, sequestro de carbono pela agricultura, reflorestamento e restauração florestal — também com alto potencial de mitigação de emissões, porém a custo maior do que o das energias renováveis.

Fronteira de área agrícola com vegetação nativa do Cerrado, na região conhecida como Matopiba - Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace

Algumas intervenções chegam a ter custo negativo, no sentido de que permitem reduzir gastos ao mesmo tempo que reduzem emissões e melhoram a qualidade de vida das pessoas. Por exemplo: a redução de demanda e aumento da eficiência energética nos setores de transporte e construção, com a adoção de carros e prédios mais econômicos e menos poluentes.

“Reduzir as emissões de gases do efeito estufa em todo o setor de energia requer grandes transições, incluindo uma redução substancial no uso geral de combustíveis fósseis, a implantação de fontes de energia de baixa emissão, a mudança para transportadores alternativos de energia e eficiência e conservação de energia”, diz o Sumário para Tomadores de Decisão, um resumão simplificado de todo o conteúdo científico do relatório, feito para subsidiar as discussões políticas e diplomáticas sobre o tema.

O desafio é enorme, mas não inatingível. Segundo o relatório, com uma combinação de boas políticas, boas tecnologias e bons comportamentos (pautados pela sustentabilidade) é possível reduzir as emissões globais de GEE em 40% a 70% até 2050, sem precisar inventar nenhuma roda. O que já seria suficiente, segundo os cientistas, para segurar o aquecimento global abaixo de 2ºC, pelo menos.

O custo econômico dessa mudança seria alto, claro, mas com uma relação de custo-benefício excelente. O impacto no PIB mundial seria de apenas alguns pontos porcentuais até 2050, segundo o relatório do IPCC. Ou seja, a economia mundial continuaria crescendo, apenas cresceria um pouco menos, com a vantagem nada desprezível de evitar o caos climático no planeta. “O custo da mitigação é alto, mas o custo de não reduzir emissões é pelo menos três vezes mais alto”, pontuou Artaxo. “É um preço muito grande que a nossa sociedade vai ter que pagar, e portanto temos que evitar e minimizar os danos o máximo possível.”

Navio plataforma da Petrobras - Foto: André Ribeiro / Agência Petrobras

Captura de carbono

Feita essa redução emergencial de emissões, a conquista da neutralidade de carbono, necessária para estabilizar a temperatura do planeta a longo prazo, vai exigir um esforço adicional de captura, estocagem e até remoção de gás carbônico da atmosfera — um conjunto de ações descrito pela siglas em inglês CCS (de carbon capture and storage) e CDR (de carbon dioxide removal).

“O novo relatório nos alerta para a necessidade de reduzirmos drasticamente as emissões num prazo muito curto e, depois, ainda implementarmos processos de captura do carbono já liberado anteriormente. Neste cenário, tanto tecnologias para captura de CO2 concentrado na fonte quanto disperso na atmosfera terão papel importante, algumas em momentos mais preponderantes que outras”, diz o engenheiro Gustavo Assi, professor da Escola Politécnica da USP e diretor de inovação e difusão de conhecimento do Centro de Pesquisa para Inovação em Gases do Efeito Estufa (RCGI). 

Gustavo Assi - Foto: RCGI

Inaugurado em 2016 na Poli, com financiamento da Fapesp e da empresa Shell, o RCGI investe fortemente no desenvolvimento de tecnologias de CCS e CDR — além de CCU, que contempla também a utilização do carbono capturado como matéria-prima para produção de energia e outros materiais.

“O contexto do Brasil é muito interessante”, avalia Assi. “Repare que o novo relatório atribuiu um papel importantíssimo para a mitigação das emissões através de reflorestamento, agricultura, biocombustíveis, energia eólica e energia solar. Estas soluções aparecem com a melhor relação custo-benefício para implementação urgente, e sabemos que o Brasil tem muito potencial para contribuir nestas áreas.” 

O que não significa, porém, que o Brasil deva simplesmente abandonar sua indústria de óleo e gás do dia para a noite, diz o professor. “Ao mesmo tempo que novas soluções precisam aparecer no cenário para redução de emissões, necessitaremos de uma drástica descarbonização dos setores alimentados por combustíveis fósseis”, afirma Assi. “A exploração de hidrocarbonetos ainda é uma necessidade para o desenvolvimento dos países, mas a transição da matriz energética deve ser mais que um discurso bonito. Como solucionar estas duas demandas que parecem conflitantes? A resposta está na transformação da indústria de óleo e gás, na sua integração com novas fontes de energia, na sua integração com a nova matriz energética do hidrogênio e na busca por uma indústria de hidrocarbonetos neutra em emissões. Este movimento, que parece utópico — extrair óleo e gás sem emitir carbono — é possível através de uma revolução tecnológica no setor.”

Pedalada climática

Na contramão de todos esses alertas da ciência, o governo brasileiro apresentou nesta quinta-feira (7 de abril) a nova versão da sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) — o conjunto de ações que o país se compromete a realizar, de forma voluntária, em contribuição ao esforço internacional de enfrentamento da mudanças climáticas globais, norteado pelo Acordo de Paris, da Organização das Nações Unidas (ONU).

Fonte: Observatório do Clima / Reprodução

A nova NDC traz uma atualização dos compromissos assumidos pelo Brasil em 2015, na gestão da presidente Dilma Rousseff, que previam uma redução de 37% das emissões nacionais de GEEs até 2025 e de 43%, possivelmente, até 2030, em relação ao que o País emitia em 2005. Em 2020, já na gestão do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil enviou à ONU uma atualização dessa NDC, que basicamente mantinha as mesmas metas de redução, porém utilizando uma nova base de cálculo (a Terceira Comunicação Nacional, de 2016), que revisava para cima as emissões do País em 2005 e, consequentemente, reduzia o tamanho das reduções que precisavam ser feitas proporcionalmente até 2025 e 2030. Uma manobra contábil de carbono que ficou conhecida na comunidade científica e ambiental como “pedalada climática”.

A nova NDC, apresentada agora, eleva a meta de corte de emissões de 43% para 50% até 2030, mas segue permitindo que o País emita mais carbono até esta data do que estava previsto na NDC original, de 2015, segundo uma análise divulgada pelo Observatório do Clima. Em suma: o novo compromisso reduz o tamanho da pedalada, mas continua pedalando. “É como ter uma dívida no cartão de crédito e pagar só uma parte da fatura. Continua sendo um retrocesso, num momento em que as Nações Unidas fazem um chamado para os países aumentarem suas ambições. O Brasil não responde ao chamado e ainda continua retrocedendo”, afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, em nota da organização.


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.

Postagem em destaque

JÁ PENSOU EM TER UM MINHOCÁRIO PARA RECICLAR O SEU LIXO?

JÁ PENSOU EM TER UM MINHOCÁRIO PARA RECICLAR O SEU LIXO ORGÂNICO DOMÉSTICO?   ...